quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Algumas Horas em um Bar Fumacento

O quê? Um grande homem? Não vejo nada além de um comediante do próprio ideal.
Nietzsche

Luzes. Pessoas dançam em um ritmo alucinado música underground. “Parece os bares londrinos” diz uma voz esnobe, cujos olhos esnobes estão a mais ou menos 70 cm de mim. Pode até parecer, mas, na verdade, é uma espelunca fumacenta em algum recanto obscuro de uma cidade obscura chamada Porto Alegre, que até já deve ter virado lugar-comum dizer que de Alegre não tem nada. Aqui estou eu, o protagonista desta história, diante de minha antagonista, pela qual, segundo o autor, estou apaixonado. Vamos dizer o seguinte: ela é rica, fala três idiomas, morou na Europa, freqüenta os melhores círculos culturais, estuda os melhores autores, é de uma família nobre e, decididamente, escolhe suas companhias ou, os poucos privilegiados que podem contar com sua majestosa presença a partir de critérios bem precisos. Além disso tudo, é casada com um ser da mesma espécie, ou, perdão, mora junto, pois o casamento é uma coisa tão burguesa... Eu? Minha maior experiência internacional foi ter ido ao Paraguai fazer contrabando, falo mal meu próprio idioma, sou fã da série de TV “Perdidos no Espaço” e Levi-Strauss para mim é marca de jeans. O que nós estamos fazendo no mesmo ambiente, conversando, bebendo, dançando, pergunte ao autor, que deve ser algum idiota de imaginação fértil e sem um mínimo de escrúpulos. Todo mundo sonha um dia em ser um personagem de ficção, um herói, ter superpoderes ou encontrar uma princesa na torre de um castelo esperando para ser salva. Imagine só ser parte de um clássico da literatura, bravo, intrépido, imortal. Pois é, caro leitor, sou um personagem da literatura, mas tive o azar de ser criado por um escritor desconhecido que escreve sobre a mediocridade da vida cotidiana.
Alguma coisa aconteceu entre nós. Eu, como já disse, estou apaixonado. Ela, ou está brincando comigo, ou é mais um estudo antropológico e transcultural, ou está apaixonada por mim mas o seu cérebro superior a impede de admitir, ou é mais uma coisa que as mulheres fazem sempre e ninguém sabe o que é e nem chega perto de entender. Como ela é? Quem já leu Machado de Assis deve saber o que são “olhos de ressaca”, cabelos negros cortados pouco abaixo das orelhas, lisos, no estilo Channel. Não basta apenas usar uma roupa, é preciso vestir-se bem, e é o que ela faz. Porra, não há como negar que é uma mulher de classe, do tipo que esmaga as pessoas quando apenas levanta as sobrancelhas. Esquecendo toda a retórica engraçadinha, ela é tão linda que eu esqueceria todas as mágoas e daria o Nobel de literatura para o sr. Akiles Cronópio por tê-la criado. Uma questão de estética.
Nesse exato momento, ela me diz coisas que o ruído da música e das milhares de pessoas quase me impede de ouvir, mas eu sei que não é sincero. Eu respondo sempre com sinceridade, pois, como estou apaixonado, sou um otário, um rato de laboratório, um indígena que viu um espelhinho vagabundo e trocou a vida de seu povo por isso. Eu penso “céus, por que eu não agarro ela, foda-se o resto”. Mas há uma barreira de reflexões, éticas, momentos, subjetividades que, para mim, é até transponível, mas, para ela, não. Pensando bem, eu acabaria afundando na profundidade da existência daquele ser tão denso e singular. Aliás, o leitor deve perguntar o que uma pessoa “casada” está fazendo a esta hora da noite em tão suspeita companhia? Ora, dizer homens otários parece ser uma redundância. Somos todos iguais, independente de cor, raça, credo ou opção filosófica. Até um personagem vagabundo de um conto mal escrito sabe disso.
Peço licença e vou ao banheiro. Minha cabeça está girando um pouco, o estômago está embrulhado e o coração está tapando os ouvidos. Lá se vão algumas cervejas e um resto de canelone esgoto abaixo. Vomitar é a coisa mais importante que uma pessoa pode fazer quando as coisas não vão bem. Agora meu estômago está limpo, posso pensar melhor, beber mais, engolir mentiras e idiotices com mais desenvoltura.
Saio do banheiro e, no meio do longo caminho de esbarrões e cotoveladas, enxergo um rosto estranhamente familiar. Não pode ser. Eu ainda não bebi e ouvi bobagens o suficiente para ter alucinações, mas é ele: Henry Charles Bukowski. Lá estavam aqueles olhos tristes, aquela cara amassada e trágica empinando um whisky em tempo recorde. Estamos em 1998, e Bukowski morreu em 1994, no entanto, eu não existo, nada existe, então isso não importa.
-H...Hank?
-Sente-se, garoto, e beba algo. Eu andei te observando. O que está acontecendo?
-Não sei...
-Claro, nós nunca sabemos nada, ainda mais fedelhos como você. Eu, na sua idade, já havia apanhado muito e era imbatível na bebida. Sem falar que nunca dei muita importância para as mulheres além do que elas realmente merecem. Depois de mais de mil trepadas, a maioria não muito boas, posso lhe dizer que o sexo é interessante mas não é totalmente importante. Quero dizer, não chega nem mesmo a ser tão importante (fisicamente) quanto a excreção. Um homem pode chegar aos 70 anos sem uma buceta, mas pode morrer numa semana sem um movimento dos intestinos.
-A tal da “postura gélida”? Eu li essa história.
-As mulheres são umas putas invencíveis, não vale a pena tentar subjugá-las, nós não nascemos para isso, ninguém nasceu. A postura gélida é uma maneira de ver o mundo, e de agir (ou não agir) em relação a tudo, inclusive às mulheres. As pessoas pisam nos nossos calos, tentam nos humilhar, superar, mas, porra, vamos todos morrer e acabar como um imenso bolo de merda dentro de uma privada somente esperando algum almofadinha puxar a descarga. Só o Homem Gélido sabe disso, e a vida segue para ele. Não sei se ser Gélido é a solução para alguém, talvez não seja para você, ou seja somente para os velhos fodidos e bebuns como eu.
-Um dos maiores escritores do nosso tempo, também?
-E isso importa? Agora não passo de um monte de ossos em algum cemitério vagabundo. Eu sempre tentei me esconder das coisas e das pessoas, e minha obra é isso também. Bata de cabeça na parede, garoto, mas levante depois. Você é jovem e puro demais para ser Gélido. Ei, veja só...
Neste exato momento aparece uma ruiva, ou melhor, aparece um CORPO: coxas, bunda, peitos, lábios, tudo no lugar e no momento certos. Tive que parar por uns dois minutos que foram os melhores da minha vida para admirar aquilo. O prato predileto do Velho Safado. É a minha deixa.
-Obrigado, Hank.
Vou em direção ao meu destino. No meio da fumaça escuto um saxofone, e uma voz angustiada, mas ao mesmo tempo tão firme e doce, um som realmente perturbador e apaixonante. É David Bowie nos seus melhores dias:
Here it comes, here comes the night...
É belo, é triste, pareço ouvi-la junto às batidas do coração
I can see trhough out my window
Walking down the street my girl
With another guy
Her arms around him just like she does with me
It makes me want to die
Here it comes, here comes the night
Sentamos em uma mesa. Agora resolvi colocar as coisas nos seus devidos lugares, planejar o futuro, dizer tudo o que penso, que sinto. Expliquei-lhe o quão importante é a paixão. Quimicamente, fisicamente, biologicamente falando, há importantes alterações no organismo. A paixão é uma herança de nossos ancestrais macacos, que preocupavam-se apenas em reproduzir-se, ou seja, essa coisa de ficar distraído pensando apenas em uma pessoa é um resquício da loucura que é encontrar o parceiro ideal para a reprodução. O organismo inteiro vibra e trabalha em direção a um único ser no intuito de perpetuar a raça. Toda uma espécie depende da relação entre seres do sexo oposto. É por isso que muitas pessoas cometem suicídio por estarem apaixonadas e não serem correspondidas. Não apaixonar-se é um crime hediondo contra a vida. O que eu quero dizer a ela é que a cada paixão não correspondida ocorre um momento de desarmonia no universo, uma pequena, mas significativa em um contexto maior, vitória de Tanatos sobre Eros. Nossa existência corre perigo nesses momentos. Ela apenas olha. Eu quero beijá-la, acariciá-la, protegê-la. Ela pede tempo. “O tempo não importa, apenas a vida importa”, respondo, sentindo-me invencível. Às vezes tenho vontade de cagar na minha própria cabeça, mas, às vezes, não. Foda-se a vida e a raça humana, o sol vai explodir dentro de alguns milênios, mesmo. Ela olha por trás de mim. Lembrei de um sonho que tive, no qual todos os frangos da terra assumiram uma forma humanóide e resolveram vingar-se das pessoas que os assaram e comeram durante séculos.
-Olhe, o Ken chegou.- Ken, é, na hierarquia dos otários, um posto acima de mim. “O marido”.Como em todo sistema hierárquico, certamente alguém se fode. Ah, esqueci de dizer que estávamos lá para comemorar o aniversário de uma amigo meu, e o Ken não havia sido convidado. Pelo aniversariante, é claro.
Apertei a mão do rapaz com a diplomacia cabível e a cara de quem cagou na própria cabeça. Fiquei mudo. Dois segundos que valem pelo diário de Matusalém: farei ou não farei uma cena de filme americano barato? Saio correndo e chorando? Meto a mão no infeliz e mostro qual macaco é mais forte? Puxo minha U.Z.I. e mato todos no ambiente? Já sei! Sou um homem civilizado e, afinal, podemos ser todos amigos (essa hipótese me faz pensar em recém-nascidos sendo estuprados por tiranossauros). Aproveitei que estava bebendo cerveja e realmente precisava mijar.
-Vou ao banheiro.
Paguei a conta e saí.
Here comes the night
Estava uma noite quente, e eu me sentia muito bem. Saí caminhando no meio da rua. Penso no velho Hank. Alguma coisa mudou. Não consigo sentir raiva, nem mais nada, apenas uma estranha sintonia com a rua escura pela qual caminho. Se vou morrer agora ou se sou imortal, nada mais importa. A vida agora passa a ser um filme chato no qual pode-se dormir no meio e acordar sem ter perdido grande coisa. É noite de lua nova e entre os bêbados, os traficantes e os garis madrugadores emerge do asfalto sujo de sangue e cacos de vidro o Homem Gélido, cuja primeira respiração capta o ar poluído e viciado de um mundo insano.

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