Há algo de inquietante entre a luz da lua e a cor dos olhos que a fitam
Algo que tem o cheiro das coisas secretas
É frio, cortante e sereno
Algo que murmura uma canção escrita muitas eras atrás, e que não foi acabada
Uma canção sonolenta, hipnótica, sedutora, que não é percebida pela simples audição
Há algo de estranho entre a luz da lua e a cor dos olhos que a fitam
Algo belo, cinzento e suave
Tem o gosto das lágrimas choradas há muito tempo, que se misturaram à chuva
Há algo excitante entre a luz da lua e a cor dos olhos que a fitam;
O presságio da morte sob o céu estrelado
Penso em um ser vivo parado, imóvel, no meio de um imenso campo, um mar de grama com mínimas ondulações, a 1000 quilômetros da árvore mais próxima. Este ser vivo está imóvel, tentando inclusive não pensar. Este ser vivo está isolado do mundo? Não haverá uma brisa para mover seus cabelos? O sol não vai enviar raios de luz e calor em infinitas freqüências e intensidades com as nuvens a servir-lhe de cortina? E se, por acaso, este ser não estiver em cima de um formigueiro, e o farfalhar laborioso dos insetos coletivos entrar em ressonância com seus ouvidos e transmitir uma mínima mas IRRITANTE vibração em seus ossículos e sua membrana timpânica? E a gravidade da lua, não estará atraindo o ser vivo juntamente com a Terra (e as formigas)? E o ar que o ser vivo respira, não terá sido respirado algum dia por um coveiro aposentado que perdeu a vida trabalhando para os mortos serem enterrados sem poder enxergar as próprias lápides? E, sejamos francos e honestos, é claro que a qualquer momento o celular pode tocar e microondas irão seus neurotransmissores afetar e em um inesperado relance uma idéia pode brotar.
Apesar de não ter celular, a idéia que passou por Harold rápida mas incomodamente naquele momento em que observou a imagem de Jesus Cristo plantou-lhe a semente que, em algum lugar do seu cérebro, desencadeou uma plantação de outras idéias que plantaram mais sementes, que chegaram a sua consciência na forma de uma pequena sensação de incômodo, digna de desprezo, que poderia ser atribuída ao calor das tardes de fim de janeiro.
Harold, naqueles derradeiros dias de verão, estava querendo isolar-se um pouco do mundo, descansar das tórridas exigências e tolerâncias que a vida em sociedade comete. As relações humanas parecem tão pouco evoluídas e tão confusas, em parte pela perda total de sentido das coisas causada por um sistema de cunho massificante, que procura reduzir cada vez mais as diferenças, as possibilidades, criar padrões universais de costumes, retirar as tradições e culturas passadas e substituí-las por um único padrão de ser e existir, ou seja, assim como o dinheiro é um fator universal para compras, ao sujeito cabe tornar-se consumidor universal. O ponto máximo, o segundo advento capitalista: o homem e a mercadoria tornarem-se imanentes.
Por outro lado, a solidão não é um estado absolutamente fixo, aliás, como todos os estados. Ninguém é sozinho, e sim está sozinho. Assim como quando se está casado a solidão pode atrair em certas circunstâncias, quando se está solitário ela pode repelir. Tudo no mundo oscila, o amanhecer torna-se manhã que torna-se tarde que torna-se crepúsculo que torna-se noite que torna-se madrugada e assim por diante, do contrário os casados seriam sempre 100% casados e os solteiros seriam sempre 100% solteiros, e a vida acabaria.
E ali estava Harold, em seu devir solitário e errante, caminhando pela beira do rio entre grupelhos de jovens sonolentos à espera da queda do sol, mulheres horrendas e embriagadas estiradas ao astro cancerígeno e traficantes escorregadios esperando gestos e olhares. Por entre a vegetação lacustre (sejamos insuportáveis: é lago e não rio) duas garotas interessantes, acendendo, puxando e passando, e olhando. O que chamou a atenção foi o fato de uma delas ter a estampa de Jesus na camiseta. Olhares são devolvidos e trocados, mas a solidão acelera os passos e Harold recolhe-se.
Vermelho. A grama que reflete a pálida luz do luar está vermelha, as águas marrons do Guaíba parecem vermelhas como a praga de Moisés sobre o Nilo. O cheiro magnífico e inebriante de sangue retesa seus músculos, seus olhos, seu nariz, faz com que a noite fique iluminada e aberta, para que possa enxergar tudo o que é vivo e se esconde.sob aquilo que cobre a noite.
Dois reais é tudo o que alguém precisa quando está prestes a enxergar um belo pôr-do-sol em um domingo à tarde sem futebol. Estava tudo pronto para a paz quase sem limites quando duas figuras mitológicas nefastas, de bonés brancos, algemas e objetos bélicos ejetores de projéteis à base de chumbo e clavas pós modernas amarrados a suas cinturas, olhares ray-ban vagabundos galhardamente montados em bucéfalos de mesmo nível cultural, apareceram do nada.
-Entãoquédizêquiagorapódifumá, hein?
Tom sarcástico grau 1000 na escala FHC.
-Entãoquédizêquiagorapódifumáhein?
-Repetição eqüina sarcástica- Harold balbuciou estas palavras sem lembrar que o silêncio é o segredo da vida longa. Ninguém ouviu. Talvez só pensou que disse.
-Purquêtunãojogôissoforainda, hein?
Os filhos da puta têm técnica. Não são policiais de filme que dizem “alto, somos a polícia, você está preso”. Fazem perguntas, e sabem, assim como os educadores antigos, que seres humanos apavorados têm dois tipos de reação diante de inquisições sumárias: ficam em silêncio ou dizem toda a verdade, não importa se saibam dela ou não. Aliás, o silêncio é a mais imediata das respostas. E Harold estava em silêncio.
-Quifoi? Ficômudo, hein?
...
-Hein? Ficômudo?
Respostas. A vida condensou todas suas perguntas naquela esfinge que tem cabeça de animal também e não atura dualidades, ou seja, “devoro-te ou devoro-te”
-Temmaisalgumacoisaí, hein?
-Achuquiogatocomeualínguadele, hein?
O interrogado abriu sua pochete. Não queriam ver seus documentos nem saber quem eram seus pais. Queriam o fumo. Não. Queriam roubar alguém e este alguém não pode denunciar nem reclamar. Eram crianças brincando de polícia e bandido, sendo eles polícia de verdade e Harold, o brinquedo
Agora sente calor, como se a cor vermelha do sangue o acariciasse como os raios de sol da aurora.
Estava sendo roubado e podia ser punido por explicar as circunstâncias de um delito cometido contra ele próprio, objeto de um prazer microcósmico e momentâneo de dois pés-rapados cujo salário diminuto e a dura vida eram recompensados com pequenos minutos de divindade relativa.
No momento em que as leis não são ao menos mentiras, Harold pensou em poesias, em o quanto a morte parece quase palpável. Sua indignacão tornava-se ódio de tudo que andava e rastejava, sentiu pena e considerou seus agressores tão desprezíveis que os perdoou. É a natureza. O show acabou. Viram que não havia nada que prestasse e deram meia volta para seguir suas rotinas e voltar para casa. Harold agora estava livre para ver o pôr-do-sol. Foi só um susto. Vermelho. Tudo agora parece vermelho.
II
Patas de cavalo, armas, cassetete e cabelos humanos estavam esparramados sobre a mesma poça de sangue em que Samael estava mergulhado. Tudo o que sabia era seu nome e que havia gosto de sangue em sua boca, e era bem capaz de concluir que havia estraçalhado dois cavalos e dois seres humanos que, provavelmente, eram policiais. Sentia um intenso prazer em cada molécula de hemoglobina que vertia em sua garganta, mas não o suficiente.
O jovem predador mergulha nas águas negras e passa a sentir em seu cérebro o conhecimento de muitas eras. A sabedoria do universo aguçava sua fome, o empurrava para a caçada, e tudo mais parecia fazer sentido. Não precisava mais saber quem era. O caos forneceu-lhe um presente inestimável: ser um acaso tão imortal como uma supernova que surge nos confins do espaço ou uma perfeita gota do orvalho matutino deixando passar por si a luz branca do sol. O batismo.
Samael dá seus primeiros passos na relva macia até o concreto de uma ciclovia repleta de artérias pulsando em pescoços suados. Percebe que está vestindo um calção de banho e uma camiseta ensopados de sangue e água poluída. Volta para a beira do rio e sente o cheiro de quatro humanos, dois de cada sexo, e o odor de ilex paraguaiensis. Os quatro jovens aproximam-se e perguntam as horas. As duas fêmeas são bem atraentes. Aproxima-se. Nota a imagem de Jesus Cristo na camiseta perfumada da bela morena, e uma tatuagem subindo pelo pescoço. Uma sensação estranha percorre seus caninos.
-Horas? Não, eu não uso relógio.
-Então tá, valeu.- barba comprida, cabelo comprido, aquele coração luminoso no lugar incorreto, lá estava J.C. movendo-se sobre um par de seios.
-Posso fazer uma pergunta? É mera curiosidade. Porque tu usas uma camiseta com Jesus Cristo estampado?
-Ah, sei lá, é uma camiseta velha, e, afinal, Cristo era um cara muuuuuito legal. Eu não dou bola para o que a igreja fez com ele, deturpou a imagem de alguém que era simples e pacífico. Eu acredito em um Deus dentro de cada um de nós, e não precisamos ir numa igreja encontrar ele. Sei lá, é uma força. Afinal, por que será que o universo é tão perfeito?
-Tem razão, por que será? Não é todo dia que vinte litros de sangue jovem caem do céu, não é mesmo?
-O quê?
-É a natureza...
Parece repetitivo, mas não há campanha publicitária capaz de descrever o que um vampiro sente quando bebe sangue. E é tudo grátis.
III
Dez minutos depois.
Frederico Hinterholtz , 32 anos, empresário, estaciona seu Porsche no gigantesco estacionamento branco de um shopping center, acompanhado de sua jovem esposa, Bárbara. Ao sair do carro ambos notam a aproximação de um jovem de longos cabelos negros e olhos cinzentos, vestindo calção e camiseta sujos de sangue.
-Boa noite- Samael os saúda docemente- eu preciso de uma pequena ajuda. Como vêem, estou mal vestido e com muita fome.
-Não tenho dinheiro-esbraveja Frederico, dando sinal de impaciência- e eu e minha esposa estamos com pressa.
Uma morena de tirar o fôlego, voluptuosa, seios proporcionalmente grandes e firmes, maquiagem sóbria, usando um vestido de seda que acariciava seu corpo bronzeado e com um cheiro enlouquecedor. Frederico é alto e loiro, estilo Klaus Kinski, e está vestindo um Armani cinza escuro.
-Tudo bem, dinheiro não é problema.
O pescoço de Frederico quebrou em um gesto simples e sutil. Bárbara tentou gritar, mas seus lábios foram paralisados por um beijo longo e sensual, que transformou seu horror em um incontrolável desejo por aquela perturbadora figura que acabara de assassinar seu marido. Feromônios: não há fêmea que resista a eles, como os insetos que são atraídos pelo fortíssimo e inebriante odor das flores noturnas.
Bárbara agora está dentro do Porsche, em cima de um ser de músculos rijos e movimentos ágeis que está deitado sobre suas roupas. Teve seu último e mais perfeito orgasmo enquanto sua língua era arrancada e por sua boca vertia todo o sangue de seu corpo até o último suspiro.
Samael vestiu as roupas de Frederico, deixou os corpos dentro do carro e aproveitou as entradas no bolso do terno para ir ao cinema como qualquer mortal.
- “Mal vestido e com muita fome”. Essa foi boa.
Naquela noite, rara para um cinema de shopping center e um casalzinho “emergente” (enfim, isto é uma obra de ficção), estava em cartaz “Solaris”, de Andrei Tarkowski. Um filme existencialista russo de quase três horas e muito arrastado. Mas quem se preocupa com o tempo, afinal?
quarta-feira, 15 de dezembro de 2010
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário