segunda-feira, 12 de março de 2007

Feche bem os olhos para dormir

Feche bem os olhos para dormir

Eu

Cavaleiro das armas escuras
Onde vais pelas trevas impuras
Com a espada sangüenta nas mãos
Por que brilhas seus olhos ardentes
‘E gemidos nos lábios frementes
Vertem fogo do teu coração? Cavaleiro, quem és? o remorso?
Do corcel te debruças no dorso...
E galopas do vale através
Oh! Da estrada acordando as poeiras
Não escutas gritar as caveiras
E morder-te o fantasma nos pés?

Onde vais pelas trevas impuras,
Cavaleiro das armas escuras,
Macilento qual morto na tumba?
Tu escutas... Na longa montanha
Um tropel teu galope acompanha?
E um clamor de vingança retumba?

Cavaleiro, quem és?- que mistério.
Quem te força da morte do império
Pela noite assombrava a vagar


O fantasma

Sou o sonho da tua esperança
Tua febre que nunca descansa
O delírio que há de te matar...

Álvares de Azevedo

I

Uma vida normal, é o que todos querem. Pegar ônibus, trabalhar, ligar a TV, ir ao shopping center consumir na falta do que fazer, preencher o espaço vazio do avançar do tempo que é dinheiro com atividades que são mais vazias ainda. Por sinal, a expressão “tempo é dinheiro” torna-se cada dia mais verdadeira, e, em tempos de velocidades como estamos, o tempo das atividades práticas está diminuindo com as máquinas tornando-se cada vez mais completas, como escravos contemporâneos. A questão é que o tempo economizado é algo precioso, é o chamado tempo livre, aquele mesmo para ir ao cinema, ou ao teatro, ou velejar, visitar os amigos e colocar as leituras em dia. Quantas pessoas não poderiam descobrir seus talentos literários ou plásticos aproveitando suas curtas jornadas de trabalho descobrindo todas as possibilidades que a arte proporciona de transformação de uma realidade através de sua representação pela via do sujeito, o saudável conflito hermenêutico das subjetividades. Não. O sistema quer consumidores, e não cidadãos. A loucura capitalista está cada vez mais intensa e megalomaníaca, e hoje o destino do universo parece estar nas bolsas de valores e nas altas e baixas do dólar. O dinheiro, sendo ele a mais simbólica das invenções, está funcionando como um buraco negro de sentidos, o grande atrator. Eu gostaria de, um dia, nascer e passar o tempo todo de minha vida em um país diferente do Brasil, para saber se, como eu, alguém de outra pátria vive em uma cultura econômica e comercial tão intensa e tão melancólica. Estamos pagando juros há quinhentos anos e todo mundo sabe o que é estar por algum tempo endividado e pagando compromissos, e alguns morrem por suas dívidas, mas, nosso país, nossa economia coletiva, está em uma grossa enrascada desde quando os portugueses trocavam espelhinhos, rum, fumo e doenças por riquezas minerais inestimáveis e o prazer mesquinhamente sádico e bárbaro de subjugar e dominar outros povos. Para bom entendedor, meio milênio basta para nossos credores, sejam eles quem forem, descobrirem que, desde a primeira promissória que um brasileiro assinou cinco séculos atrás, sempre olhamos para o lado (como o Romário faz) e dizemos “nós sempre pagamos nossas dívidas, qualé, tão duvidando de mim?!” e os débitos vão acumulando. Estou convencido de que a dívida é a razão de ser do brasileiro, nosso produto nacional.
E era na sua enorme dívida com o banco que Ian estava pensando enquanto caminhava pelas ruas escuras do centro de Porto Alegre, enquanto uma tórrida chuva molhava seus pés, suas calças, seus documentos, sua vida e seu desespero. Suas meias estavam enxarcadas e seu corpo doía de frio e cansaço, uma constante exaustão. Era preciso parar tudo, estancar o fluxo da realidade, deter os giros de um mundo que o sacudia, triturava e misturava como um liqüidificador cósmico.
Ian pisava nervosamente nas poças d’água enquanto lembrava de um sonho muito reprisado em suas noites: Porto Alegre sob um ataque nuclear, bombas atômicas e mísseis provocando explosões luminosas e espetaculares. Este pesadelo, possivelmente, assombrou várias gerações que viram um ex- cowboy decadente Ronald Reagan propagandear sua Guerra nas Estrelas e assistiu “The Day After”, um filme catástrofe cujo americaníssimo roteiro reproduzia a temível Guerra Atômica e os pacatos e milimetricamente heróicos cidadãos americanos em suas vidas W.A.S.P. antes e depois das explosões. Enquanto as ogivas explodiam em seu sonho, e sua pele estava para ser incinerada ou seus orgãos internos desmanchavam-se com a radiação, ou sua mente ocupava-se em descobrir por que diabos alguém bombardearia Porto Alegre, Ian pensava que a guerra acabaria na marra com o sistema, pelo menos abriria um espaço para a reconstrução de algumas coisas, o surgimento de outros tipos de sociedades e formas de viver em um mundo pós-holocausto Um susto! A raça humana precisava de um susto, do tipo daquele que alguém leva quando é atropelado em uma rua vazia e a única coisa que se vê após o baque são os paralelepípedos e algum imbecil hipócrita perguntando quem se machucou. A miséria humana clama por um aviso dela mesma: pare e pense. Ian já ouvira histórias sobre a possibilidade de somente as baratas sobreviverem ao holocausto. Considerando que não passamos de uma praga de seres compostos de água e carbono que mancha a crosta terrestre, devemos ficar felizes, pois, como conceito e princípio, a humanidade sobreviverá!
-Nhacnhacnhacnhac
II

Um barulho estranho ecoava pelos cantos e superava levemente o dos intermináveis pingos de chuva. A rua estava completamente vazia, com exceção de uma criança que atravessou o caminho de Ian e ficou parada no meio da calçada. Algo estava errado. Era um bebê loiro, de imensos olhos azuis, vestindo apenas uma fraldinha branca com um alfinete do Mickey, não pediu dinheiro e estava completamente seco. Seu olhar era repleto de inocência e candura, as pequenas gengivas sorriam e as mãozinhas abanavam alegremente, como se um pedaço do céu tivesse desabado e trouxesse junto um anjinho brincalhão e desajeitado. Sua voz era estridente como a de qualquer bebê, mas a fluência das palavras ultrapassava a de qualquer adulto.
-Precisamos conversar, Ian.


III

A chuva havia parado e Ian estava deitado no meio fio com o crânio latejando de dor. Teria escorregado e batido a cabeça? Começou a sentir pancadas no rosto, abriu os olhos e vislumbrou a figura tétrica de um policial tentando reanimá-lo.
-O que foi, andou bebendo demais hein?
-Eu..., hã...acho que escorreguei e bati a cabeça.... tive um sonho estranho.
-Sei. Tem um pouco de sangue no seu cabelo, acho melhor ir até o H.P.S. para dar uma olhada.
-Hei, porco!
Aquela voz! Lá estava o anjinho caído, que, ao que tudo indica e sob certa argumentação filosófica, era de verdade.
-Hei, porco, deixe ele em paz.
O policial se virou e demorou a perceber de onde vinha o som daquela vozinha irritante. Abaixou-se, ficou observando por alguns instantes, um pouco surpreso, e pôs as mãos nas imensas e rosadas bochechas da pequena e adorável criaturinha como se ela fosse um brinquedo de borracha.
-Que porra é essa...
-Nhac-Levou uma mordida daquelas no dedão.
-Ai! Seu merdinha, eu vou te ensinar...
-Nhacnhacnhacnhac- o anjinho passou a mastigar a mão do homem de uniforme, que gritava desesperadamente.
-Nhacnhacnhac- da mão para o braço, nhacnhacnhac do braço para o tórax nhacnhacnhac, o sistema digestivo, excretor, nhacnhacnhac secretor; a criaturinha trabalhava rapidamente e com extrema eficácia considerando que era completamente banguela.
Ian olhava paralisado para o sangue que escorria entre pedaços de ossos, dentes e nacos de carne mole e vermelha entre manchas amareladas de gordura. É disso, e nada mais, que um ser humano é composto. É claro que um leitor com mais (ou menos) espírito crítico imaginaria o absurdo que é uma criancinha de oito quilos ser capaz de devorar um adulto dez vezes maior, e permanecer com o volume inalterado, mas o papel de um escritor é relatar os fatos, independente deles serem verdadeiros e coerentes ou não. O negócio é que o sujeito foi completa e absolutamente deglutido em menos de cinco minutos, e não sobrou nada, nenhuma idéia, nenhuma piada, nenhum ato, nenhuma dor, por mais desprezível que fosse.
-Burrrrp. Arrrrout, como eu já disse, precisamos conversar.
-Qual é o assunto? E o que diabos é você e o quer comigo?
-Eu posso lhe dizer o segredo do universo... buurrrp... e de graça. Quem eu sou não interessa. Basta saber que eu sei o segredo de tudo o que existe. E você ganha de brinde o sentido da vida.
-Ah, é? E por que eu iria querer saber o segredo do universo?
-Ora, todos querem saber. É para isso que serve a arte, a ciência, a filosofia e a religião.
-Se eu quisesse, e porventura soubesse o segredo do universo, quem iria acreditar em mim? As pessoas iriam perguntar quem me disse, e o que eu responderia? “Foi um merdinha devorador de brigadianos de meio metro de altura que criou inteligência e liderou um motim em algum berçário”? Ótimo! Eu poderia escrever o roteiro de um filme, mas ele seria considerado um plágio descarado e mal feito do “Brinquedo Assassino” que já é descarado e mal feito. Ninguém se importa com o segredo do universo, já está fora de moda, seria mais uma manchete nos jornais e em alguns programas de TV, e, aliás, muitos já descobriram à sua maneira, pois é impossível postular uma verdade universal. Não podemos desconsiderar a hipótese de, em outros lugares do mundo, e até mesmo em outros planetas, seres iguais a você estarem tentando passar o mesmo golpe. É óbvio. Por que não? Uma gangue de estelionatários mirins salafrários com cara de anjinhos barrocos vendendo verdades apócrifas. Puro marketing barato. Olha, seja lá quem ou o que for, você ainda precisa estudar muito. Além do mais, já é tarde e é hora de um pequeno sofista estar na cama.
-Espere! Eu posso provar. Eu sou uma entidade mágica mais antiga que o tempo, eu possuo a sabedoria infinita...
-É claro.
Ian agarrou a arma do brigadiano e a descarregou naquele pivete cósmico embusteiro. Não há entidade mágica que resista a um bom “tresoitão”. Ele não fará falta, já existe merda no mundo capaz de manter as latrinas ocupadas por milênios. O segredo do universo estava ali, caído na calçada e evaporando junto com os esgotos e a urina dos ratos. Afinal, que importa se um velho barbudo e arrogante criou tudo em sete dias para poder exercer seu autoritarismo, ou uma grande explosão arremessou planetas e estrelas em tudo que é canto e em alguns o carbono, o oxigênio, o hidrogênio e o nitrogênio misturaram-se de uma forma maluca até chegar em uma criatura que gasta seus domingos inúteis na frente da T.V.? E se alienígenas plantaram sementes aqui e a raça humana é, na verdade, uma grande colônia? E se algum gigante megacósmico parou em nosso sistema solar para dar uma cagada e a merda veio parar aqui e os vermes contidos nela evoluiram? E se tudo for o sonho de algum adolescente espinhento que passou tempo demais na Internet? E se, neste momento, como uma imensa linha de montagem, em algum lugar que pode ser a bilhões de quilômetros de distância ou dentro da pia do banheiro entre os aparelhos de barbear, há um escritor escrevendo esta mesma história neste mesmo computador nesta mesma cidade?
Chega.
Akiles Cronópio

Um comentário:

Unknown disse...

Vim. Ainda não li. Depois de amanhã, na sexta-feira, quando a semana estiver morta, eu volto para ler. Não sabia dessa tua veia literária, mas lembro que escrevias poesias em inglês na época da faculdade. Legal que escreves. Depois comento. Um beijo. Mariane.