Sexo, Drogas e Animais Domésticos
AkilesCronópio
Mont’ Serrat é um bairro portalegrense relativamente tranqüilo e pacato, não havendo muitos motivos para preocupações radicais com a segurança. Pode-se chamar de preocupações radicais cercas elétricas, cacos de vidro nos muros, circuitos internos de TV, alarmes, cães do tamanho de cavalos e seguranças do tamanho de seguranças, enfim, tudo o que custe uma fortuna e sirva para proteger televisões e videocassetes. Dentro da monotonia cotidiana de qualquer bairro residencial, pode ocorrer um ou outro roubo de carro, ou algum assalto ou uma briga, mas nada muito freqüente. Quem tem Marco Maciel como vice-presidente certamente deve ter outras coisas para preocupar-se, afinal, para que o medo de ser roubado funcione é preciso ter alguma coisa para roubar, assim como para que uma televisão funcione é preciso pagar a conta da luz.
Por favor, que ninguém me pergunte em que zona fica meu bairro, pois, além de eu não ter a mínima idéia, esta história de zona não me agrada nem um pouco. Certa vez, na época do colégio, o pai de um colega perguntou se minha mãe era de Nova Prata, eu respondi que não, mas que nossa família vinha de uma zona próxima.
Pois é, uma vez o meu pai me levou na zona e nós encontramos ela...
Desde então, eu evito usar o termo “zona” (principalmente diante de velhos bebuns).
Era uma daquelas noites quentes, típicas das quartas-feiras dos últimos dias de novembro. Não por acaso, era quarta-feira, e novembro estava terminando. Na verdade isso não é nenhuma coincidência, pois eu não recordo direito quando era, talvez isto nunca tenha acontecido, e muito menos no fim de novembro e numa noite quente, mas, se acontecesse alguma coisa, eu gostaria que fosse nesse dia. Pois é, era 29 de novembro, uma noite tão quente que os dragões tinham que voar mais alto para pegar um ar fresco. Dragões? Sim, dragões. Algum problema com relação a dragões?
Lá estava eu, chegando em casa às onze da noite, cansado, entediado, chateado, molestado, sonolento, faminto, endividado e decididamente de saco cheio. O ônibus havia demorado mais do que o necessário para me irritar, e, na verdade, eu não queria ir para casa, nem para lugar algum.
Nunca suportei o calor das noites de fim de dezembro. Eu disse dezembro? Ora, há alguma diferença climática relevante entre as noites de fim de novembro e dezembro? E faz alguma diferença ser novembro ou dezembro? Eu nem disse que ano é, e nem vou dizer, afinal, não importa. Para suportar um pouco a temperatura, comprei meia-dúzia de cervejas no mercado próximo e sentei no pátio de casa, fazendo um esforço danado para não pensar. Atrás da minha suntuosa residência há um enorme prédio, tão enorme que parece uma parede entre meu pátio e o infinito. Minha antena de televisão não capta canal nenhum por causa daquele monte de concreto e condôminos. Com o advento da TV a cabo e graças a esta maravilha da arte arquitetônica de amontoar pessoas posso agora assistir programas musicais mexicanos, porto-riquenhos e trinidad-tobaguenses, e pagar por isso. Eu não entendo lhufas de espanhol, então mudo para canais que passam filmes americanos dublados em português e com legendas na pobre e castigada língua de Cervantes e dos turistas argentinos. Globalizemos, pois, globalizemos.
As cervejas estavam geladas e desciam rapidamente enquanto olhava para as janelas do edifício. Nada além de um imenso paredão cheio de donas de casa, maridos e crianças. Além, é claro, das luzes de Natal. Eles nos mandam tomar banho frio e morrer de calor sem ar-condicionado para economizar eletricidade e no Natal lançam concursos para ver qual casa fica mais iluminada. Certamente estamos a mercê de futuras uzinas nucleares e vazamentos radioativos que logo deixarão tudo brilhando. Merry Christmas, cidadãos cancerígenos moradores de bunkers. Já imagino os presentes de Natal: luvas com seis dedos, óculos para três olhos, camisolas de chumbo... Será a geração raios-X (parabéns a você, leitor, que sobreviveu a este festival de trocadilhos infames e idiotices de mau-gosto, porém, é apenas o começo).
Em meio aos goles de cerveja e o bater de asas dos dragões, começo a escutar gritos e sons de coisas quebrando vindos do edifício. Vamos dizer que as vozes pertencem a três representantes da raça humana: duas fêmeas caucasianas, uma pré-púbere, outra já passando dos trinta e um macho (típico) entrando na crise dos quarenta.
-Filho da puta!-disse a mulher mais velha.
-Puta és tu-fala o grande macho-vou pôr uma roleta na porta do teu quarto.
-Não me bate, ai não me bate!
Coisas quebram e voam pela janela: um abajur, roupas, toalhas, revistas. Algo peludo é arremessado, não dando para identificar direito (o apartamento é no oitavo andar). Não sei por que, eu juro que não sei por que, resolvi investigar o que estava acontecendo. Saí para a rua e presenciei um espetáculo dantesco: velhas com bobs nos cabelos, velhos de pijama, taxistas, empregados de um supermercado próximo, crianças, mulheres, homens... Todos olhando para cima com a boca aberta ou comentando bobagens. Se você quer mudar o mundo deve pensar em duas coisas: a primeira é desistir, e a segunda é estar preparado para enfrentar algo mais do que exércitos ou a imprensa.
Nesse burburinho todo, um fala para o outro, que chega aos ouvidos de um terceiro, um quarto e um quinto, que por acaso sou eu. A polícia chega, entra no prédio, demora alguns instantes e volta triunfante: o marginal foi preso em flagrante batendo na mulher. Bom, depois descobri que a história não era bem assim. O que aconteceu é que naquele apartamento morava uma mulher que recebia homens em casa, e não para tomar chá ou ver novela. Junto com ela morava a filha de doze anos, que como a maioria de nós, é oriunda de uma entre tantas relações sexuais que o ser humano tem em sua curta, porém entediante, vida. Naquela noite, certamente alguém resolveu reclamar seus direitos do consumidor de uma forma, vamos dizer, enfática.
Não sei o motivo da surra (se é que tinha motivo), mas fiquei atônito quando vi aquela massa de pêlos e sangue estatelada no playground do edifício. Um gato. Aquela coisa peluda que eu vi ser arremessada pela janela era um gato preto e gordo, que agora fazia parte do piso. Não havendo mais nada para fazer ali ou em qualquer outro lugar, voltei para casa e esperei a noite passar para começar outro dia, e assim seguia o ciclo do sol e do tempo entre as janelas empoeiradas e a triste e consoladora idéia de que tudo isso vai acabar.
Epílogo
Não faz muito tempo que eu sou um gato. Na verdade, não sei direito, afinal, gatos não sabem sequer ver as horas. Minha vida era relativamente tranqüila, minhas donas me alimentavam sempre e cuidavam bem das necessidades básicas, que não são muitas, pois gatos não vêem TV, não usam cartão de crédito e não vão três vezes por semana ao analista (nem falar, nós falamos...).
A única coisa estranha eram as pessoas, também humanas (creio eu) que visitavam o apartamento com uma certa freqüência. Anões, japoneses, anões japoneses, halterofilistas, trapezistas, estudantes universitários e até escoteiros conviviam ali em plena harmonia. Eu não entendi ainda por que aquele baixinho de bigode se irritou e resolveu espancar minhas donas. E o que é pior: ele me pegou pela cauda e começou a bater na mulher... comigo. Agora que eu entendi a expressão “só dando com um gato morto na tua cabeça”.
Bem, aqui estou eu voando em direção ao chão. Não tem problema. Gatos não sabem o que é a morte. Só espero que haja bastante leite e uma boa caixa de areia. E nenhum anão.
segunda-feira, 12 de março de 2007
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