segunda-feira, 12 de março de 2007

Tijolada com mel

Tijolada com Mel
Akiles Cronópio

Branco. Paredes brancas, o teto é branco, e pessoas de branco correm de um lado para outro. O ar está branco. Levantar a cabeça agora é uma tarefa complicada, mas sempre é preciso olhar o relógio. Quatro horas da madrugada na emergência do Pronto-Socorro, e está frio, um frio orgânico e irresistível. A essa hora o corpo simplesmente resolve esfriar, e não importa se lá fora está 35 ou quarenta graus. Estou imóvel. Estarei morto? Tento lembrar como cheguei aqui, e o porquê de estar na sala de espera, e não agonizando em alguma cama cheia de tubos de borracha, para terminar tudo onde tudo começou. Pessoas nascem em um hospital, morrem em um hospital, passam suas vidas em um hospital e, às vezes, seus cadáveres ficam ali sendo abertos e fechados, e a triste eternidade da morbidez é passada em um hospital. Hoje é sábado e, pelo calendário ocidental, ontem foi sexta-feira.
Uma festa de aniversário! É, pode ser. Um aniversário no salão de festas de um condomínio fechado. Cheguei um pouco tímido, conhecia poucas pessoas, e resolvi ficar em um canto, apenas observando. Comecei e fumar um cigarro atrás do outro. Uma criatura feminina de olhos azuis e largo decote foi-me apresentada e fiz um certo esforço para bater um papo. Os olhos eram muito azuis, parecia que iam saltar para fora das órbitas, e estavam assimétricos em relação as demais partes do globo ocular. Apenas uma frase sobre isso: se Capitu usasse lentes de contato, Bentinho jamais sentiria o misto de paixão e temor pelos seus belos e perturbadores olhos de ressaca, e certamente Dom Casmurro teria virado novela mexicana.
Valia a pena ficar olhando para o decote, além de ser muito interessante pensar que o homo sapiens sapiens apresenta em seu cérebro um conjunto extremamente complexo de células nervosas chamado córtex. O córtex é responsável pelas funções superiores do sistema nervoso, como o raciocínio, a memória e a elaboração do discurso. Graças e esta valiosa estrutura surgiram grandes pensadores como Platão, Descartes, Kant, Nietzsche e Camille Paglia e, para quem, por algum motivo, não tornou-se um grande pensador, o córtex fornece a habilidade de ler, interpretar e ensinar suas grandes obras e sistemas simbólicos. Bom, como eu ia dizendo, é curioso observar como uma criatura, representante da espécie homo sapiens sapiens, saudável (e que saúde), portadora de uma estrutura cortical perfeitamente funcional e freqüentadora de um curso superior de Psicologia (onde se deveria ensinar os Grandes Pensadores) não é capaz de articular mais do que duas frases seguidas, e quando o faz, as palavras não vão a lugar nenhum, ficam diluídas no mar de sons que banha a atmosfera terrestre. Eu tenho uma hipótese ecológica muito íntima de que a poluição sonora em nosso planeta é conseqüência do número de imbecilidades fúteis e politicamente corretas que as pessoas dizem apenas pelo ato de dizer, e não dos pobres operadores de britadeira ou dos inocentes automóveis.
Agora chega de bancar o crítico. Encerrei minhas pesquisas e fui dançar um pouco. A pista estava totalmente recoberta de fumaça de gelo seco e corpos balançavam desordenadamente no ritmo seqüenciado e violento da disco dos anos noventa. Ali estava eu, que quando criança fiquei emocionado ao ver Tony Manero executar manobras ousadas e ágeis, unindo sua agressividade latina ao souldiscofunk britânico dos Bee Gees. Agora, aos vinte e três anos, fico sacolejando o corpo na falta do que fazer ou dizer. “Ah, que sujeito chato sou eu que não acha nada engraçado...” Sim. Somos uma juventude conservadora em um mundo conservador. Olho à minha volta: o lugar cheio de estudantes universitários vestindo as mesmas roupas, comentando sempre os mesmos assuntos e partilhando os mesmos e inexistentes ideais. Mortos. Estão todos sobrevivendo em suas vidas vazias repletas de batons, carros importados, McDonalds e anfetaminas, esperando o momento certo para casar e repetir a mesma história de seus pais e seus avós. Houve um tempo em que os pais e os filhos entravam naquilo que os psicólogos de plantão na mídia chamavam de conflito de gerações, e que a melhor forma de acabar com este conflito seria o diálogo. Hoje não há mais conflito, não há diálogo, não há nada. São todos autômatos na frente da televisão, repetindo falastrices como “recursos da iniciativa privada” e “estudar com vistas ao mercado de trabalho”, e que cada um tem o direito de pensar e fazer o que quiser. Eis o que os gordos empresários, médicos e advogados, progenitores dessas pobres crianças projetam para os seus filhos: uma ecologia liberal, onde os pacientes pagam para os psicólogos e psiquiatras anestesiarem a angústia de vidas improdutivas e monocórdicas. Crianças. Lembro de o quanto a televisão era alucinante para mim, de quanto eu brincava imitando os personagens dos desenhos animados e dos filmes japoneses. Agora os adultos e os quase adultos imitam com perfeição tudo o que a TV mostra, não em brincadeiras, mas em suas vidas cotidianas. Esse papo de juventude rebelde acabou, se é que existiu algum dia...ei, o que é aquilo?
No auge da fumaça, dos decibéis e da cerveja quente aparece um par de seios, um par de olhos, um nariz, milhares de fios de cabelo negros, longos e brilhantes, trilhões de células epidérmicas lotadas de melanina ativada pelo sol recobrindo os músculos, o sistema circulatório, nervoso, glandular, reprodutor e tudo o mais que possa constituir o que os ocidentais chamam de CORPO. E o que é melhor: o tecido industrial que cobre esta maravilha genética o faz com total incompetência, e meus olhos ardidos de gelo seco podem vislumbrar um objeto quase celestial. E mais: ela dança olhando para mim, ou melhor, não dança, faz desenhos pelo ar, lança olhares furtivos e despretensiosos, uma harmonia de aproximações e afastamentos, o primeiro ato da ópera do acasalamento. Preciso de outra cerveja. Entro na cozinha e sinto o inebriante odor da erva sagrada. Ora, até que uns dois pegas não vão mal. Entro na roda, converso por uns dez minutos e volto a minha dança tribal. Ela continua lá, flutuando pela pista, volta e meia olhando fixo nos meus olhos. Preciso mijar. Há um enorme espelho na porta do banheiro e ali fico olhando para minha própria cara inchada e patética.
-Muito bem, Flávio Amorim, agora é tudo contigo.
É tudo comigo, e parece fácil. Será? Acho que fiquei paranóico, ela deve estar olhando para mim tanto quanto para qualquer coisa ou pessoa nas proximidades, afinal, é uma festa cheia de pessoas.
-Vamos, Flávio, isso é um jogo de cartas marcadas, e a tua está fora do baralho. Toma mais umas cervejas, vai comer um X e esperar a noite acabar em algum boteco.
E se ela se interessou realmente? Peço um cigarro, pergunto as horas, fico falando uma ou duas bobagens, vamos para algum lugar, damos uma trepada e aí acabou, vou para minha casa, assalto a geladeira e vou dormir na companhia dos mosquitos, na serena e animal felicidade do dever cumprido, sem nenhuma preocupação com o fim da ética, da política e do amor nas relações humanas. Quem sou eu para falar do mundo, afinal? Eu estou aqui, não estou?
Lá estava ela, chegando cada vez mais perto, o demônio medieval do sexo. Foda-se a sociedade, fodam-se os loucos e os grandes pensadores. Ela parece enfeitiçada, a vítima perfeita, lânguida, sensual, os olhos agora fechados, dançando cada vez mais lentamente, e acabando por despencar no chão duro e frio como uma velha ponte sendo implodida ou o pobre jagunço Adilson Maguila Rodrigues atingido pela lendária “tijolada com mel”, apelido carinhoso dado ao famoso cruzado de esquerda do gigante “Big” George Foreman, 45 anos e quase 200 quilos. Duas ou três amigas a erguem e levam para a rua. Uma figura patética, mal consegue manter os olhos abertos e balbuciar coisas ininteligíveis. Alguém tenta enfiar refrigerante goela abaixo, e, como ele vem, volta. Eu fiquei ali observando suas coleguinhas falarem com ela, tentando reanimá-la, colocá-la em pé, só para cair de novo e ficar pior. Passo a escutar murmúrios:
-Ah, meu Deus, ontem ela brigou com o noivo.
-Ela tá mal, eu acho melhor levar no HPS.
Noivo? Ela não devia ter mais que dezessete anos e estava noiva. Dizem que é a nova moda: voltar aos tempos do compromisso, das alianças, das boas relações entre as famílias e à fidelidade eterna, e, acredite, caro leitor, fala-se até em casar virgem. Agora os bons ideais familiares e puritanos remixados estavam ali, atirados no sofá, vomitando e dando vexame.
Agora nossa bela noivinha estava completamente inconsciente. Bom, já que todos os machões saíram correndo, alguém precisa fazer alguma coisa. “Oh, não, Alfred, o bat-sinal! A mulher gato está sofrendo uma overdose!” Ajudo as amigas a carregá-la e colocá-la em um táxi e fomos os quatro ao HPS.
-Tu és o namorado dela?
Branco. Está tudo branco de novo. Uma imensa mulher de branco está agora me fazendo perguntas. Onde está o comunicador? “Sr. Scott, transporte para um, agora!” Tudo o que quero agora é retornar à Enterprise, participar de alguma batalha contra os Klingons ou tentar convencer Spock de que é metade humano e que também possui emoções.
-Sr. Sulu, levantar os escudos e prosseguir em dobra espacial 4.
-O quê?
-Não, eu não sou o namorado dela, na verdade eu nem sei seu nome. Nós estávamos em uma festa e ela simplesmente desabou.
-Como é o teu nome?
“ James Tiberius Kirk, comandante da Enterprise”.
-Flávio.
- Pois é, Flávio, ela vai ficar bem. Apenas bebeu além da conta e tomou muitos remédios para depressão.
-Sei. Uma injeção de glicose, uma limpeza estomacal e já pode ser vendida como nova.
-Exatamente.
-Então eu acho que posso ir. Até mais.
-Até mais.
-Ah, por favor, não diga nada a ela sobre mim. Bom, enfim, não há nada para dizer, mesmo...
-Pode deixar.
Caio fora daquele lugar cheio de sobreviventes de guerras urbanas. Agora sou apenas mais um em busca de uma cerveja, e lá estava ela no S.O.S Bonfim, bem em frente ao hospital. Uma Norteña gelada, um cigarro e a noite agora seguia rumo a um final feliz.
E aí, vale a pena?

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