segunda-feira, 12 de março de 2007

Mordidas

Mordidas
I
Velocidade. É isso o que mais impressiona. Em questão de segundos posso atravessar Porto Alegre usando meus próprios pés, e nem sequer altero meus batimentos cardíacos. Sim, estou morto há muitos anos, e, em termos práticos, já deveria ter virado pó e estar dentro de um caixão. No entanto algo aconteceu, e não consigo me lembrar. Posso recordar a maior parte das coisas que fiz em vida, mas não tenho a mínima idéia de como morri, ou não morri, enfim, como cheguei em tal situação. Tudo o que posso dizer é que me sinto muito bem assim. As coisas melhoraram muito. Não fico doente, não envelheço, os poucos ferimentos que sofro cicatrizam rapidamente, ganhei músculos, meus cabelos crescem mais depressa e todos meus sentidos estão superaguçados. Até o raciocínio e a atenção funcionam muito acima de qualquer ser humano. Já treinei com ratos de esgoto. Posso perseguir um roedor por quilômetros de tubulação, durante dias, sem perder a pista, entre milhares de outros animais, sons e cheiros.
Acredito que todo esse acréscimo seja por não me preocupar mais com as coisas da vida, aliás, estou fora dela. Hoje posso ver tudo de cima, e tenho a eternidade para estudar e pensar tudo com muita calma. Não preciso de dinheiro, e, se por acaso precisar, basta pegá-lo. Posso entrar em qualquer lugar sem ser percebido, ver televisão, ouvir sobre a vidas das pessoas, seus momentos mais tristes, mais alegres, mais íntimos, escutar ligações telefônicas, e, como bom vampiro pós-moderno, posso conectar-me a Internet apenas com um pouco de concentração. Com tanta informação ao meu dispor, não achei o mínimo registro da minha morte nem da minha vida. Não há mais família, amigos, colegas, namorada... apenas lembranças,que aparecem como filmes que vi há muito tempo.
É claro que há pequenas desvantagens e acredito que o leitor já saiba quais são: só posso sair à noite, não posso comer alho e as drogas não fazem efeito em mim. A única que eu nunca entendi é a do alho. Ah, é claro, o principal: preciso beber sangue humano ainda quente para viver, ou seja, tornei-me um assassino serial que alimenta-se do sangue de suas vítimas. Calma, não saio por aí matando crianças. Conseguir comida é uma arte que exige técnica e extrema discrição. A polícia não me assusta nem um pouco, pois posso fugir rapidamente para um lugar ermo e lá ficar por uma centena de anos, mas é bom manter distância dos tiras e da imprensa, do contrário nunca terei paz e acabarei sendo confundido com Drácula ou com Lestat. Assim, quando tenho fome, basta andar em alguma rua escura e esperar que as presas que pensam que são predadores venham até mim, depois, é só dar um jeito de eliminar os corpos e ninguém vai sentir falta. Confesso que não é uma tarefa das mais agradáveis, mas, enfim, regras são regras, ainda que violem outras regras.
Como deve acontecer com poucas pessoas, tive uma oportunidade radical de mudar meus rumos, de ver o mundo de fora. Agora presto muito mais atenção em tudo, tenho tempo para aprender, estudar, refletir. Vou ao cinema, a bares e boates, converso com pessoas e sinto o prazer de inventar histórias de vida, profissões, dramas, ou coisas assim. Hoje vivo a própria inexistência, o não-ser que também é ser-tudo. Algumas vezes já dei uma de vampirão clássico: ir a uma festa, olhar para a garota mais linda e rica, hipnotizá-la e fazer uma bela refeição, ainda que com gosto de McDonalds ou anfetaminas. Não sei por que, ou talvez seja óbvio demais no contexto de vampiros homens, mas o sangue de mulheres jovens faz com que todos os meus poderes aumentem muito e fiquem quase fora de controle. A última vez que mordi uma adolescente saí voando pelos ares como um míssil e depois tive que caçar todos os que viram a cena. É muito arriscado se expor deste jeito.
II
Agora ando pela Farrapos, uma avenida grande e iluminada, onde ficam as grandes boates, mas que é circundada por pequenas ruelas escuras, lugar dos travestis e das mulheres que já estão “passadas do ponto” para ocupar um lugar de “strippers”. O tempo, a miséria e a concorrência transformam as “modelos”, “massagistas especiais” e “garotas de programa” em simples “putas”, largadas na calçada entre carros, garrafas voando, andares, olhares. O curioso é que a Farrapos, durante o dia, é uma avenida estritamente comercial: lojas de autopeças, casas lotéricas, postos de gasolina, movimento nervoso dos ônibus e caminhões. Agora há um universo de cores, sons e cheiros da noite festiva e erótica. Aqui estou eu entre as esquinas, em uma noite agradável de sábado, observando tudo e à procura de um lanchinho. Alguma coisa parece estar vindo em minha direção. Máquinas de matar como eu têm boa intuição. Olho para trás. Um enorme Galaxy negro desliza pelo asfalto em alta velocidade. Um pequeno movimento para a esquerda e estou fora de um perigo que seria inexistente. Barulho de freios e cheiro de borracha queimada. Cinco chineses descem do carro, provavelmente vindos de algum filme ruim dos anos 70. Roupas longas, caras de deboche, cabelos à moda Beatles. Um vampiro e cinco clones do Bruce Lee em Porto Alegre nos anos 90. Nesta hora é que retomo a idéia de que, na verdade, sou um personagem de alguma história em quadrinhos ou um livro de ficção de algum maluco que resolveu juntar personagens de várias outras histórias em uma única e mal escrita.
Meus companheiros inexistentes atacam. As artes marciais foram criadas para tornar os soldados mais rápidos, ágeis e precisos, e os clones que me atacam agora são mestres em Kung Fu. A questão é que não há nada na face da Terra mais rápido, ágil e preciso que eu, e tenho ainda o bônus de não precisar de defesa. Uma bela cena forjada por chutes, socos, saltos mortais e quase trinta litros de sangue com gosto de ópio barato e frango shop suey. Enterro os corpos em um terreno baldio e vou passear em meu carrão novo.
III
Duas horas da madrugada. Depois de uma farta e pouco digesta refeição estou circulando pelas boates em busca de alguma emoção entre cafetões, prostitutas, raiva, ódio, alegria, frivolidade, prazer, doenças venéreas e uma ou outra gravidez. Diante da vida sou pequeno demais, mas, se porventura tivesse o tamanho do universo, certamente ninguém enxergaria. Paro no sinal e uma criatura de um metro e setenta, 50 quilos, cabelos negros e lisos, olhos também negros, pouca maquiagem e um perfume que lembrei ter sentido quatro quarteirões atrás põe a cabeça para dentro do carro.
-E aí, o que vai querer?
-Entre.
-Não sei se posso.
-Olha, o máximo que pode acontecer é eu te estripar e beber teu sangue, e, a essa hora da manhã, tanto faz se for aí fora ou aqui dentro do carro, além do mais, recém adquiri a máquina e não quero manchar o estofamento. Não de sangue. Vamos, por acaso eu tenho cara de quem faz mal às pessoas?
-Tem.
Junto com a resposta veio um sorriso, um belo sorriso, e ambos me atingiram como uma estaca.
-Vou cobrar um extra. Já é tarde e estou precisando de grana.
-Tudo bem. Anda gastando muito?-em uma breve avaliação constato que não usa drogas e goza de razoável saúde- Drogas?
-Não, cinema. Sou fanática por cinema, de qualquer tipo. Hoje tirei “Independence Day” na locadora e, antes do trabalho, fui assistir “Jackie Brown”.
-Ora, Quentin Tarantino é um dos meus cineastas preferidos.
-Ah, é? É o meu também. Ele é capaz de usar a linguagem cinematográfica para produzir uma brutal reflexão sobre a temporalidade, através de cenas que saltam pelo eixo sintagmático e acabam por constituir-se em vários eixos paradigmáticos.
-Além de trazer elementos intertextuais, como cenas de outros filmes ou a própria trilha sonora. Uma história de Tarantino é constituída por muitas outras, e detalhes sutis as unem.
-O exemplo mais claro é o roteiro do filme “Um Drink no Inferno”. A trama, até então igual aos outros filmes, com armas e homens de preto, transforma-se em um festival de terror. É a melhor história sobre vampiros que já vi ser filmada.
O papo estava tão bom...droga, acho que ela notou que não gostei.
-Desculpe...
-Tudo bem. É que você é o primeiro cliente com quem eu falo sobre cinema e acabei ficando empolgada.
-Podemos continuar o papo depois.
-Espere um minuto, preciso arrumar algumas coisas.
Começa a vasculhar em sua imensa bolsa, da qual retira maquiagem, preservativos, perfume e Kleenex, que espalha no banco traseiro.
-É para não sujar o estofamento.
Eu não recordo se já sorri alguma vez, eu digo um sorriso verdadeiro, e agora descubro músculos faciais que eu pensava não existirem.
-Finalmente um sorriso. O que há? Não gosta de mostrar os dentes?
-Às vezes...
-Fique à vontade-começou a tirar a roupa.
Lembrei, então, que sou um cadáver tão frio que ela vai sair correndo no primeiro beijo. Preciso esquentar o corpo, e para isso aprendi uma técnica Zen: fico olhando para seu pescoço até todos os meus sentidos estarem voltados para suas artérias. Em poucos segundos entro em equilíbrio térmico com o líquido vermelho e vital que circula rapidamente
pelo seu belo corpo. É assim que zumbis ficam excitados. Pulei em cima dela e fomos para nosso leito de Kleenex. Faço movimentos rápidos. Ela morde meu pescoço de leve e olha fundo em meus olhos. Há algo errado. Começo a sentir uma energia estranha, algo queimando dentro de mim, mas não provoca dor. Estou indo cada vez mais rápido. Fecho os olhos e começo a delirar, vejo o sol nascendo dentro do peito. Volto a olhar nos olhos. Ali o sol está mais forte. Ela geme e grita. O orgasmo é intenso e mútuo, e ambos caímos, exaustos. Não sinto cansaço há muito tempo. Meus dentes começam a crescer e os músculos contraem. Não! Vou para fora do carro.
-O que houve?
-Nada, só não chegue perto agora, por favor...ei! -sinto um par de dentes enormes no meu pescoço. Giro o corpo e a jogo contra o carro. Paramos para ficar nos olhando sofregamente: os olhos de gato, as imensas mandíbulas...começamos a rir, e, ao mesmo tempo, chorar.
- Sei lá, eu achava que estava sozinho, ou poderíamos nos reconhecer de alguma forma.
-Eu acho que nós dois vemos filmes demais, aliás, que gosto estranho!
-É comida chinesa em fast food.
Tive uma imensa vontade de beijá-la, e beijei como nunca havia feito antes. Algumas coisas não mudam, na vida ou na morte, e agora posso entender o sol que nasce dentro de mim, pois ele substitui o verdadeiro sol, tanto para os vivos quanto para os mortos.
-Está tarde, preciso ir.
-Você volta?
-Sim. Que tal um cineminha e depois “jantar fora”?
-É claro.
Mais um beijo e um grande abraço, e saio voando, eu nem havia pensado em voar, mas já estava no céu, vislumbrando minha bela cidade em seu breve silêncio antes do amanhecer. Decido mergulhar nas escuras águas do Guaíba, e lá adormecer. Na superfície, aparelhos de barbear são ligados, dentes são escovados e crianças sonolentas tomam seu leite com chocolate. Coisas que, para mim, são apenas lendas distantes.

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