IV
Nesta morte entediante é preciso inventar sempre novas diversões dentro do caos de se poder fazer quase tudo e as drogas serem substâncias inócuas. Desde que descobri que podia voar, meu hobby é quebrar a barreira do som e mergulhar no Guaíba como um meteoro. Não há nada mais pueril, mas faz com que se pare de pensar um pouco. Desde que encontrei uma fêmea da minha própria “espécie” minha dualidade humana parece ter voltado como se estivesse vivo. Aral é uma vampira angustiada, e a angústia parece ter lhe tirado os escrúpulos. Ambos somos apaixonados e temos apenas um ao outro, mas ela diz que sou um fraco, que tento misturar-me aos mortais, que tento recobrar minha antiga vida. Na primeira vez que nos vimos, nenhum de nós sabia que o outro era um vampiro, e ela estava fantasiada de prostituta à espreita de alguma vítima e pulou sobre mim como se eu fosse o manjar dos deuses. Aral age como se fosse uma deusa, odeia os mortais, e não pensa nas conseqüencias de seus atos. Sua fome de sangue é aumentada por seu ódio, seu rancor, sua arrogância, sua frustração por não saber mais o que é ou de onde veio. Eu sou sua única referência, e não posso dar as respostas que quer. Não sabemos como morremos, e nossas vidas anteriores são meras lembranças. Nunca conversei com Aral sobre isso. Talvez ela tenha sido mãe de muitos filhos ou alguma líder política, e agora é um ser assexuado, pois vampiros não procriam. Alguém que orgulhava-se de dar a vida ou lutava pela vida humana agora transformou-se em um ser de morte.Eu? Em minhas lembranças só vejo indiferença. Para mim é melhor estar morto, e, como diria Machado de Assis, “não tive filhos, não deixei para nenhuma criatura o legado da nossa existência”. Ela odeia tudo o que sou, o que faço, meus sentimentos, meus atos, e mais de uma vez chegou a ir para bem longe. Mas o mundo é grande apenas para os vivos, e Aral sempre acaba voltando, pois o amor para os vampiros é igual ao dos humanos: uma prisão sem portas. Já faz dois dias que está desaparecida. E foi justamente aqui no rio que comecei a sentir um cheiro familiar.
V
O anoitecer cinza-chumbo parece piorar ainda mais a vida de um homem que está parado em meio a ventos frios e molhados, e seus olhos vislumbram as ondas escuras de um rio triste e fétido. Nos bolsos de seu casaco encontram-se umas poucas moedas e cigarros molhados, que a esta altura já estão dilacerados e misturam-se a água que faz seus ossos tremerem. É necessário sair dali, sair do mundo. A chuva dá uma pequena trégua e a brisa gélida traz um odor forte e familiar. Carlos Ribeiro, em sua vida anterior que está prestes a terminar, já encontrou muitos cadáveres, que chegaram a esse estado das mais variadas formas. Aquele corpo que estava na ciclovia da avenida Beira-Rio era de um mendigo e tinha indícios de um ataque feito por um cachorro dos grandes, podia-se ver claramente a marca das presas em seu pescoço. No entanto, havia pouco sangue esparramado no local, os ferimentos eram simétricos demais e não havia sinais de luta ou marcas de patas. Algo ou alguém havia segurado firmemente a vítima, mordido o pescoço e bebido boa parte do sangue... algo desloca-se às suas costas. O reflexo e os dias de desespero fazem com que saque sua arma e dispare quatro tiros. Acertou dois. Perde o equilíbrio e despenca no meio da lama. Um rápido lampejo de luz e antes de desmaiar Carlos enxerga dentes pontiagudos vindo em sua direção.
Sons. Música. Iggy Pop?. Foi um sonho. Carlos agora sentia o calor das roupas secas e dos cobertores. Tudo foi um longo e terrível pesadelo. Abre os olhos e enxerga as paredes do quarto, a janela, as cortinas e o ar-condicionado. Não é o seu apartamento. Há uma cadeira ao lado da cama, e nela está sentado um jovem robusto, de longos cabelos e grandes olhos azuis. Provavelmente o rapaz o achou desmaiado e o salvou de morrer de pneumonia.
-O..Olá, acho que preciso agradecer... mas os corpos?
-Que corpos?
-Eu encontrei um corpo na ciclovia, um mendigo que fora atacado por algum psicopata que também me atacou, mas acertei dois tiros à queima roupa...
-Havia um só corpo, e está aqui-abriu o armário e lá estava o mendigo-Não se preocupe, eu tive o trabalho de embalsamá-lo e envolvê-lo em PVC.
Carlos procurou sua arma. Não achou.
-Mas...não pode ser... o que este corpo está fazendo aí...
-Ninguém vai sentir falta dele.
-Mas.. a pessoa que me atacou, não foi quem o matou?
-Um assassino não ficaria ao lado de um corpo procurando outra vítima. Eu sei quem atacou você, e tenho certeza de que não foi ela que matou esse pobre-coitado.
-Ela? Foi uma mulher?
-Bom dizer “ela” pode se referir a tempestades, leoas, árvores, melancias, bruxas, à morte, abelhas, baleias, nuvens.
-Sim, mas “ela” é humana, eu presumo.
-Você já leu Dante?
-O quê?
-Dante Alighieri.
-Sim, eu li “A Divina Comédia”
-Lembra do nível intermediário entre o mundo e o primeiro estrato do inferno?
-Onde estavam as pessoas que não fizeram nada de mal, mas que também não realizaram nada para o bem dos outros.
-Um limbo de indefinições, de condenados que não sabiam o crime que haviam cometido.
-Muito bem, mas o que Dante tem a ver com isso?
-Você mesmo disse que acertou em cheio dois tiros em alguém, ou algo, que o atacou.
-Sim, mas, pelo jeito, eu errei.
-A velha lógica: todos têm a obrigação de morrer com dois tiros à queima-roupa. Não, você acertou os dois tiros em cheio, uma bala atravessou o coração e, a outra, o pulmão.
-E “ela”não está morta...
-Não, e seus ferimentos cicatrizaram na hora. Se eu não tivesse aparecido para impedi-la você certamente estaria sem seis litros de sangue. Sim, somos vampiros.
-E há alguma razão para eu ser salvo?
-Sim. Em primeiro lugar não devemos matar a esmo. É uma questão política. Aral não estava com fome, mas apenas brincando de caça. Ela está passando por uma crise. Precisamos ser discretos, e, a polícia iria desconfiar de corpos de duas pessoas mortas da mesma forma no mesmo lugar. Em segundo lugar, acompanhei seu trabalho como policial e agora como detetive particular. Preciso de sua ajuda.
-Pelo que sei sobre vampiros, não sei em que posso ajudá-lo.
-Meus poderes são quase ilimitados, mas eu não sou humano, não posso sair de dia, eu não penso como um humano, meu limite é a eternidade. Além do mais, podemos formar uma boa dupla: seus conhecimentos práticos em investigação aliados a minha imortalidade nos darão acesso a tudo. Eu posso conseguir dinheiro, capturar pessoas, fazer o trabalho sujo da investigação. Os vivos e os mortos trabalhando juntos.
-Interessante. Eu achei que seria transformado em um vampiro.
-Não, isso acontece só na ficção. Eu, por exemplo, não tenho a mínima idéia de como transformar alguém em vampiro.
-Então é aí que entra Dante, vampiros vivem um limbo, não estão mortos, não sabem de onde vieram, estão condenados a sentir a vida inteira a angústia de toda humanidade, o estágio intermediário entre o mundo e o nada.
-Exato. Inclusive o termo “vampiro” vem da mera semelhança com as histórias de terror. Vampiros não existem, são apenas literatura e cinema.
-Você tem algum dinheiro?
-Tenho. Você deve estar com fome. Eu posso sair e pegar uma pizza em tempo recorde.
-Não, eu já cansei de ficar aqui deitado, vamos a algum lugar comer um X.
Aral
Ribeiro ainda não estava conseguindo entender muito bem o que estava acontecendo. Andava agora pela rua ao lado de um ser que estava morto, mas era imortal, que havia salvo a sua vida, mas poderia tirá-la sem a menor dificuldade e culpa. Dois anos de alcoolismo e solidão pareciam agora ser vistos em meio a todo o universo, onde a dimensão de nossas vidas ora curtas e ora longas é tão pequena que deixa de existir. Diante daquele rapaz com roupas escuras e olhar interrogativo e selvagem estava cristalizado o caos, as infinitas possibilidades, as concentrações de energia que circulam pelos sentidos e pelas ausências de sentido. O mundo agora parece elástico, ora muito pequeno ora muito grande, dobrando-se sobre si mesmo, diferenciando-se...
Passam por uma rua escura na qual havia um terreno baldio e deste terreno baldio em uma rua escura pessoas começaram a sair lentamente. Homens grandes e fortes e armados, em grande quantidade e, aparentemente, com muita raiva. Os velhos reflexos levam a mão ao coldre, mas não há coldre nem o que deveria haver no conteúdo de um coldre. Agora as companhias formavam uma parede. O novo parceiro que de tão novo nem o seu nome Ribeiro sabia ficou parado, apenas observando. Parecia estar sentindo cheiros, sons, texturas, velocidades. Uma espécie de transe.
- Samael.
-Quê?
-Meu nome é Samael. Dez páginas e só agora o leitor sabe o meu nome.
Os inimigos avançaram. Na verdade nem Ribeiro nem Samael sabiam o por quê daquele ataque. Talvez o escritor dessa história estivesse sem muita inspiração e quisesse colocar alguns conceitos com um cenário de luta ao fundo.
Antes de qualquer um pensar em se mexer desce dos céus uma criatura de doces e lisos cabelos negros, esguia, precisa. Esta criatura dá início a uma dança celestial, de movimentos simples, despretensiosos, eficazes, uma harmonia composta por ossos quebrados, pescoços deslocados, pequenas ações que acabam com vidas que, na verdade, são também feitas de pequenas ações.
impávida que nem Mohammed Ali, tranqüila e infalível como Bruce Lee
Eram quase trinta sujeitos armados com pistolas, metralhadoras e punhais que foram ao chão como personagens de um antigo jogo de fliperama. Poucas vezes Carlos Ribeiro havia visto uma cena tão violenta, e nenhuma vez havia visto algo tão elegante, poético e harmônico.
Aral deixou por último o maior de todos, e ficou segurando-o pelos cabelos. Olhava fixamente para Samael, que aproximou-se lentamente. Os olhos de ambos brilhavam como estrelas vermelhas e verdes, e quatro pares de presas penetraram no pescoço do corpo que estava ali, experimentando o pânico. Olhos nos olhos, separados pela fonte do líquido vital que agora compartilhavam, os ferozes vampiros comungavam com a vida, com Eros, aquilo que os impedia de diluir-se no cosmos. O ódio torna-se fome, e a fome, fome de vida, amor. Os seres de morte agora irradiavam uma tênue luz púrpura, uma fragrância de jasmim e ondas sonoras que formaram uma música
The Rain Song (LED ZEPPELIN)
This is the springtime of my loving-
the second season I am to know
You are the sunlight in my growing-
so little warmth I felt before.
It isn't hard to feel me glowing-
I watched the fire that grew so low.
It is the summer of my smiles-
flee from me Keepers of the Gloom.
Speak to me only with your eyes
it is to you I give this tune.
It isn't hard to recognise-
these things are clear to all from
time to time.
Talk Talk-
I felt the coldness of my winter
I never thought it would ever go
I cursed the gloom that set upon us
but I know that I love you so
but I know that I love you so.
These are the seasons of emotion
And like the winds they rise and fall
This is the wonder of devotion-
I see the torch we all must hold.
This is the mystery of the quotient-
Upon us all a little rain
must fall.
M.
` Aral, Samael e Ribeiro agora caminham pela avenida Oswaldo Aranha em direção à Lancheria do Parque. Ribeiro lembrou que é humano e estava a dois dias sem comer.Aral estava de bom humor e até pediu desculpas a ele por tentar matá-lo, e fazia várias perguntas sobre o trabalho de detetive particular
-Tu és o primeiro detetive particular que eu conheço, na verdade o segundo, porque o primeiro foi Ed Mort.
-E quase sou o último... bem, na verdade o Ed Mort representa bem nossa profissão: pouco trabalho, muita encrenca e quase nenhum dinheiro.
-Mas o teu nome aparecia bastante nos jornais
-Isso foi quando eu trabalhava como delegado na homicídios. Naquela época eu tinha sorte e talento. Resolvi muitos casos complicados e famosos.
-O que houve com a sorte e o talento?
-Transformaram-se em doze tiros e uma esposa e dois filhos mortos por alguém da própria polícia que também deu um jeito de tirar meu emprego.
-Esperem..-Samael levantou o nariz
-Também sinto um cheiro muito forte. Sam, há vários corpos próximos a nós, e ainda estão quentes.
-O cheiro vem da Lancheria.
Entraram e Ribeiro nunca irá esquecer o que viu ali, na velha Lancheria do Parque, lugar que fez companhia a sua solidão e o alimentou em vários momentos difíceis. Um lugar saudável, tradicional, onde várias tribos se encontravam para comer um X e tomar cerveja. O chão agora estava pegajoso, o ar estava quente e tinha cheiro de açougue. Corpos. Estudantes, artistas, trabalhadores, cozinheiros, agora eram corpos. Todos os tipos de cadáveres estavam dilacerados e amontoavam-se sobre o balcão e as mesas, sob a chapa haviam orgãos e quaisquer pedaços de pessoas. Não há o que vomitar no estômago. Samael não parece surpreso.
-Aconteceu o que eu imaginava. Meu caro Ribeiro, eis um dos motivos de nossa parceria...
-Muito bem morceguinho, quer dizer que tu sabe algo que eu não sei.
A voz vem da porta. Pequenos pontos de laser anunciam duas metralhadoras que anunciam uma figura trajando uma armadura negra, cujo rosto é a máscara da tragédia. Aral olha feio. Samael está tranqüilo.
- Olá M. Veio rápido.
-Eu tava na cola desse desgraçado. Essa não é a primeira travessura que ele faz. Há dois dias que sigo uma imensa trilha de corpos sem sangue e nenhum rastro. Vejam, não faz mais de cinco minutos que ele fez essa festa. Parece alguém que eu conheço, não é, Aralzinha?
-Ora, cale a boca seu merdinha ou eu bebo teu sangue com canudinho.
-Pode vir, meu bem. Ei, quem é o grandão, o lanchinho da noite?
-Este é Carlos Ribeiro, detetive particular. Nós encontramos juntos a primeira vítima, há exatamente dois dias, perto do Gasômetro.
-Carlos Ribeiro, hein? Finalmente nos encontramos.
-Eu te conheço?
-Não conhece o autor, mas conhece a obra: o massacre do Banrisul.
-O quê? 200 mortos entre assaltantes, civis e policiais e dois prédios inteiros destruídos...
-Algo verdadeiramente estético, mas muito arriscado.
-Por que fez aquilo?
-Ora, é o meu trabalho: matar pessoas, sem distinção de credo, raça, cor ou religião. Eu apenas faço minha parte no imenso xadrez cósmico. Eu sou Tânatos, eu sou Morte, ninguém é mais humano que eu. Akiles Cronópio escreveu um conto sobre esse massacre
A sensação de Ribeiro agora era de realmente estar sonhando.
-Mas chega de papo, a polícia vai chegar em breve e precisamos limpar os indícios. Muito bem, caros vampiros, abram o gás e desencapem todos os fios elétricos que acharem. Eu e Ribeiro vamos para fora.
Em poucos minutos tudo estava feito,e M. pressionou um botão no seu cinto que transformou suas metralhadoras em um lança- chamas. As armas passaram a expelir flores roxas, os mortos estavam vivos, aliás nunca estiveram mortos e nem existiam. A Lancheria agora estava funcionando a todo vapor, mas mudava de cor a todo instante.
-Hei, o que houve...-M. começou a mudar de voz, e sua máscara transformou-se em um rosto arredondado, cabelo loiro e ralo, óculos de aro preto-...E aí gente? Quanto mistério, hein? Vai ser difícil terminar essa história.
Aral e Ribeiro estavam atônitos. Samael parecia saber de tudo:
-Akiles Cronópio, eu presumo.
- Em carne e letras. Alguma pergunta para o criador?
-A de sempre.
-O conto é vivo, escapa da minha própria vontade. Cada pessoa que o lê faz suas próprias significações e constrói suas próprias imagens. Eu mesmo sempre mudo algumas concepções. Vocês, meus caros, são seres caóticos, construídos por palavras e idéias que já não existem mais, transformaram-se, estão em eterno movimento. Como tudo no Universo, nada além de matéria e energia que iludem nossos sentidos que também são matéria e energia.
Akiles derreteu, e tudo em volta desmanchou-se em uma imensa massa líquida infinita e multicolorida, que converteu-se em um minúsculo ponto, do qual saiu uma linha que formou outro ponto e outra linha, e outra e outra. Samael, Aral e Ribeiro agora eram pequenas partículas em movimento por uma rede intensa, transformavam-se em impulsos elétricos, figuras, sons, palavras em uma tela, movimento de dedos, teclas, olhos, raios de luz, o fluxo interminá...bananagirassolisqueirovisoreletrdom’gh;ajbu’[qo1-0294#@90n9i(,09h4#@45poliiqaiojbvgvipguwg6`0~092imnan6%-=-[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[+=[][“;AsWEEF/???0EIOJEIOMOEJPJPOJPJIPJPJPEJEKJRiejrKD0293894848855J5JFJJRUIR099sslllskieuqwytert325$59270-$%^&*()(&^#!@!#@$$#%$^#$%^%$#^&$%^*$*$^&*$&*$&*%^&*%^&____-_--__----___--__-----_---_---_---------------------------------------______________--------=---------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- --------------------------- -------------------------- ------------------------------------------------------------------------------------------------------- ------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- ---------------------------------- - -
segunda-feira, 12 de março de 2007
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