segunda-feira, 12 de março de 2007

Feche bem os olhos para dormir

Feche bem os olhos para dormir

Eu

Cavaleiro das armas escuras
Onde vais pelas trevas impuras
Com a espada sangüenta nas mãos
Por que brilhas seus olhos ardentes
‘E gemidos nos lábios frementes
Vertem fogo do teu coração? Cavaleiro, quem és? o remorso?
Do corcel te debruças no dorso...
E galopas do vale através
Oh! Da estrada acordando as poeiras
Não escutas gritar as caveiras
E morder-te o fantasma nos pés?

Onde vais pelas trevas impuras,
Cavaleiro das armas escuras,
Macilento qual morto na tumba?
Tu escutas... Na longa montanha
Um tropel teu galope acompanha?
E um clamor de vingança retumba?

Cavaleiro, quem és?- que mistério.
Quem te força da morte do império
Pela noite assombrava a vagar


O fantasma

Sou o sonho da tua esperança
Tua febre que nunca descansa
O delírio que há de te matar...

Álvares de Azevedo

I

Uma vida normal, é o que todos querem. Pegar ônibus, trabalhar, ligar a TV, ir ao shopping center consumir na falta do que fazer, preencher o espaço vazio do avançar do tempo que é dinheiro com atividades que são mais vazias ainda. Por sinal, a expressão “tempo é dinheiro” torna-se cada dia mais verdadeira, e, em tempos de velocidades como estamos, o tempo das atividades práticas está diminuindo com as máquinas tornando-se cada vez mais completas, como escravos contemporâneos. A questão é que o tempo economizado é algo precioso, é o chamado tempo livre, aquele mesmo para ir ao cinema, ou ao teatro, ou velejar, visitar os amigos e colocar as leituras em dia. Quantas pessoas não poderiam descobrir seus talentos literários ou plásticos aproveitando suas curtas jornadas de trabalho descobrindo todas as possibilidades que a arte proporciona de transformação de uma realidade através de sua representação pela via do sujeito, o saudável conflito hermenêutico das subjetividades. Não. O sistema quer consumidores, e não cidadãos. A loucura capitalista está cada vez mais intensa e megalomaníaca, e hoje o destino do universo parece estar nas bolsas de valores e nas altas e baixas do dólar. O dinheiro, sendo ele a mais simbólica das invenções, está funcionando como um buraco negro de sentidos, o grande atrator. Eu gostaria de, um dia, nascer e passar o tempo todo de minha vida em um país diferente do Brasil, para saber se, como eu, alguém de outra pátria vive em uma cultura econômica e comercial tão intensa e tão melancólica. Estamos pagando juros há quinhentos anos e todo mundo sabe o que é estar por algum tempo endividado e pagando compromissos, e alguns morrem por suas dívidas, mas, nosso país, nossa economia coletiva, está em uma grossa enrascada desde quando os portugueses trocavam espelhinhos, rum, fumo e doenças por riquezas minerais inestimáveis e o prazer mesquinhamente sádico e bárbaro de subjugar e dominar outros povos. Para bom entendedor, meio milênio basta para nossos credores, sejam eles quem forem, descobrirem que, desde a primeira promissória que um brasileiro assinou cinco séculos atrás, sempre olhamos para o lado (como o Romário faz) e dizemos “nós sempre pagamos nossas dívidas, qualé, tão duvidando de mim?!” e os débitos vão acumulando. Estou convencido de que a dívida é a razão de ser do brasileiro, nosso produto nacional.
E era na sua enorme dívida com o banco que Ian estava pensando enquanto caminhava pelas ruas escuras do centro de Porto Alegre, enquanto uma tórrida chuva molhava seus pés, suas calças, seus documentos, sua vida e seu desespero. Suas meias estavam enxarcadas e seu corpo doía de frio e cansaço, uma constante exaustão. Era preciso parar tudo, estancar o fluxo da realidade, deter os giros de um mundo que o sacudia, triturava e misturava como um liqüidificador cósmico.
Ian pisava nervosamente nas poças d’água enquanto lembrava de um sonho muito reprisado em suas noites: Porto Alegre sob um ataque nuclear, bombas atômicas e mísseis provocando explosões luminosas e espetaculares. Este pesadelo, possivelmente, assombrou várias gerações que viram um ex- cowboy decadente Ronald Reagan propagandear sua Guerra nas Estrelas e assistiu “The Day After”, um filme catástrofe cujo americaníssimo roteiro reproduzia a temível Guerra Atômica e os pacatos e milimetricamente heróicos cidadãos americanos em suas vidas W.A.S.P. antes e depois das explosões. Enquanto as ogivas explodiam em seu sonho, e sua pele estava para ser incinerada ou seus orgãos internos desmanchavam-se com a radiação, ou sua mente ocupava-se em descobrir por que diabos alguém bombardearia Porto Alegre, Ian pensava que a guerra acabaria na marra com o sistema, pelo menos abriria um espaço para a reconstrução de algumas coisas, o surgimento de outros tipos de sociedades e formas de viver em um mundo pós-holocausto Um susto! A raça humana precisava de um susto, do tipo daquele que alguém leva quando é atropelado em uma rua vazia e a única coisa que se vê após o baque são os paralelepípedos e algum imbecil hipócrita perguntando quem se machucou. A miséria humana clama por um aviso dela mesma: pare e pense. Ian já ouvira histórias sobre a possibilidade de somente as baratas sobreviverem ao holocausto. Considerando que não passamos de uma praga de seres compostos de água e carbono que mancha a crosta terrestre, devemos ficar felizes, pois, como conceito e princípio, a humanidade sobreviverá!
-Nhacnhacnhacnhac
II

Um barulho estranho ecoava pelos cantos e superava levemente o dos intermináveis pingos de chuva. A rua estava completamente vazia, com exceção de uma criança que atravessou o caminho de Ian e ficou parada no meio da calçada. Algo estava errado. Era um bebê loiro, de imensos olhos azuis, vestindo apenas uma fraldinha branca com um alfinete do Mickey, não pediu dinheiro e estava completamente seco. Seu olhar era repleto de inocência e candura, as pequenas gengivas sorriam e as mãozinhas abanavam alegremente, como se um pedaço do céu tivesse desabado e trouxesse junto um anjinho brincalhão e desajeitado. Sua voz era estridente como a de qualquer bebê, mas a fluência das palavras ultrapassava a de qualquer adulto.
-Precisamos conversar, Ian.


III

A chuva havia parado e Ian estava deitado no meio fio com o crânio latejando de dor. Teria escorregado e batido a cabeça? Começou a sentir pancadas no rosto, abriu os olhos e vislumbrou a figura tétrica de um policial tentando reanimá-lo.
-O que foi, andou bebendo demais hein?
-Eu..., hã...acho que escorreguei e bati a cabeça.... tive um sonho estranho.
-Sei. Tem um pouco de sangue no seu cabelo, acho melhor ir até o H.P.S. para dar uma olhada.
-Hei, porco!
Aquela voz! Lá estava o anjinho caído, que, ao que tudo indica e sob certa argumentação filosófica, era de verdade.
-Hei, porco, deixe ele em paz.
O policial se virou e demorou a perceber de onde vinha o som daquela vozinha irritante. Abaixou-se, ficou observando por alguns instantes, um pouco surpreso, e pôs as mãos nas imensas e rosadas bochechas da pequena e adorável criaturinha como se ela fosse um brinquedo de borracha.
-Que porra é essa...
-Nhac-Levou uma mordida daquelas no dedão.
-Ai! Seu merdinha, eu vou te ensinar...
-Nhacnhacnhacnhac- o anjinho passou a mastigar a mão do homem de uniforme, que gritava desesperadamente.
-Nhacnhacnhac- da mão para o braço, nhacnhacnhac do braço para o tórax nhacnhacnhac, o sistema digestivo, excretor, nhacnhacnhac secretor; a criaturinha trabalhava rapidamente e com extrema eficácia considerando que era completamente banguela.
Ian olhava paralisado para o sangue que escorria entre pedaços de ossos, dentes e nacos de carne mole e vermelha entre manchas amareladas de gordura. É disso, e nada mais, que um ser humano é composto. É claro que um leitor com mais (ou menos) espírito crítico imaginaria o absurdo que é uma criancinha de oito quilos ser capaz de devorar um adulto dez vezes maior, e permanecer com o volume inalterado, mas o papel de um escritor é relatar os fatos, independente deles serem verdadeiros e coerentes ou não. O negócio é que o sujeito foi completa e absolutamente deglutido em menos de cinco minutos, e não sobrou nada, nenhuma idéia, nenhuma piada, nenhum ato, nenhuma dor, por mais desprezível que fosse.
-Burrrrp. Arrrrout, como eu já disse, precisamos conversar.
-Qual é o assunto? E o que diabos é você e o quer comigo?
-Eu posso lhe dizer o segredo do universo... buurrrp... e de graça. Quem eu sou não interessa. Basta saber que eu sei o segredo de tudo o que existe. E você ganha de brinde o sentido da vida.
-Ah, é? E por que eu iria querer saber o segredo do universo?
-Ora, todos querem saber. É para isso que serve a arte, a ciência, a filosofia e a religião.
-Se eu quisesse, e porventura soubesse o segredo do universo, quem iria acreditar em mim? As pessoas iriam perguntar quem me disse, e o que eu responderia? “Foi um merdinha devorador de brigadianos de meio metro de altura que criou inteligência e liderou um motim em algum berçário”? Ótimo! Eu poderia escrever o roteiro de um filme, mas ele seria considerado um plágio descarado e mal feito do “Brinquedo Assassino” que já é descarado e mal feito. Ninguém se importa com o segredo do universo, já está fora de moda, seria mais uma manchete nos jornais e em alguns programas de TV, e, aliás, muitos já descobriram à sua maneira, pois é impossível postular uma verdade universal. Não podemos desconsiderar a hipótese de, em outros lugares do mundo, e até mesmo em outros planetas, seres iguais a você estarem tentando passar o mesmo golpe. É óbvio. Por que não? Uma gangue de estelionatários mirins salafrários com cara de anjinhos barrocos vendendo verdades apócrifas. Puro marketing barato. Olha, seja lá quem ou o que for, você ainda precisa estudar muito. Além do mais, já é tarde e é hora de um pequeno sofista estar na cama.
-Espere! Eu posso provar. Eu sou uma entidade mágica mais antiga que o tempo, eu possuo a sabedoria infinita...
-É claro.
Ian agarrou a arma do brigadiano e a descarregou naquele pivete cósmico embusteiro. Não há entidade mágica que resista a um bom “tresoitão”. Ele não fará falta, já existe merda no mundo capaz de manter as latrinas ocupadas por milênios. O segredo do universo estava ali, caído na calçada e evaporando junto com os esgotos e a urina dos ratos. Afinal, que importa se um velho barbudo e arrogante criou tudo em sete dias para poder exercer seu autoritarismo, ou uma grande explosão arremessou planetas e estrelas em tudo que é canto e em alguns o carbono, o oxigênio, o hidrogênio e o nitrogênio misturaram-se de uma forma maluca até chegar em uma criatura que gasta seus domingos inúteis na frente da T.V.? E se alienígenas plantaram sementes aqui e a raça humana é, na verdade, uma grande colônia? E se algum gigante megacósmico parou em nosso sistema solar para dar uma cagada e a merda veio parar aqui e os vermes contidos nela evoluiram? E se tudo for o sonho de algum adolescente espinhento que passou tempo demais na Internet? E se, neste momento, como uma imensa linha de montagem, em algum lugar que pode ser a bilhões de quilômetros de distância ou dentro da pia do banheiro entre os aparelhos de barbear, há um escritor escrevendo esta mesma história neste mesmo computador nesta mesma cidade?
Chega.
Akiles Cronópio

Tijolada com mel

Tijolada com Mel
Akiles Cronópio

Branco. Paredes brancas, o teto é branco, e pessoas de branco correm de um lado para outro. O ar está branco. Levantar a cabeça agora é uma tarefa complicada, mas sempre é preciso olhar o relógio. Quatro horas da madrugada na emergência do Pronto-Socorro, e está frio, um frio orgânico e irresistível. A essa hora o corpo simplesmente resolve esfriar, e não importa se lá fora está 35 ou quarenta graus. Estou imóvel. Estarei morto? Tento lembrar como cheguei aqui, e o porquê de estar na sala de espera, e não agonizando em alguma cama cheia de tubos de borracha, para terminar tudo onde tudo começou. Pessoas nascem em um hospital, morrem em um hospital, passam suas vidas em um hospital e, às vezes, seus cadáveres ficam ali sendo abertos e fechados, e a triste eternidade da morbidez é passada em um hospital. Hoje é sábado e, pelo calendário ocidental, ontem foi sexta-feira.
Uma festa de aniversário! É, pode ser. Um aniversário no salão de festas de um condomínio fechado. Cheguei um pouco tímido, conhecia poucas pessoas, e resolvi ficar em um canto, apenas observando. Comecei e fumar um cigarro atrás do outro. Uma criatura feminina de olhos azuis e largo decote foi-me apresentada e fiz um certo esforço para bater um papo. Os olhos eram muito azuis, parecia que iam saltar para fora das órbitas, e estavam assimétricos em relação as demais partes do globo ocular. Apenas uma frase sobre isso: se Capitu usasse lentes de contato, Bentinho jamais sentiria o misto de paixão e temor pelos seus belos e perturbadores olhos de ressaca, e certamente Dom Casmurro teria virado novela mexicana.
Valia a pena ficar olhando para o decote, além de ser muito interessante pensar que o homo sapiens sapiens apresenta em seu cérebro um conjunto extremamente complexo de células nervosas chamado córtex. O córtex é responsável pelas funções superiores do sistema nervoso, como o raciocínio, a memória e a elaboração do discurso. Graças e esta valiosa estrutura surgiram grandes pensadores como Platão, Descartes, Kant, Nietzsche e Camille Paglia e, para quem, por algum motivo, não tornou-se um grande pensador, o córtex fornece a habilidade de ler, interpretar e ensinar suas grandes obras e sistemas simbólicos. Bom, como eu ia dizendo, é curioso observar como uma criatura, representante da espécie homo sapiens sapiens, saudável (e que saúde), portadora de uma estrutura cortical perfeitamente funcional e freqüentadora de um curso superior de Psicologia (onde se deveria ensinar os Grandes Pensadores) não é capaz de articular mais do que duas frases seguidas, e quando o faz, as palavras não vão a lugar nenhum, ficam diluídas no mar de sons que banha a atmosfera terrestre. Eu tenho uma hipótese ecológica muito íntima de que a poluição sonora em nosso planeta é conseqüência do número de imbecilidades fúteis e politicamente corretas que as pessoas dizem apenas pelo ato de dizer, e não dos pobres operadores de britadeira ou dos inocentes automóveis.
Agora chega de bancar o crítico. Encerrei minhas pesquisas e fui dançar um pouco. A pista estava totalmente recoberta de fumaça de gelo seco e corpos balançavam desordenadamente no ritmo seqüenciado e violento da disco dos anos noventa. Ali estava eu, que quando criança fiquei emocionado ao ver Tony Manero executar manobras ousadas e ágeis, unindo sua agressividade latina ao souldiscofunk britânico dos Bee Gees. Agora, aos vinte e três anos, fico sacolejando o corpo na falta do que fazer ou dizer. “Ah, que sujeito chato sou eu que não acha nada engraçado...” Sim. Somos uma juventude conservadora em um mundo conservador. Olho à minha volta: o lugar cheio de estudantes universitários vestindo as mesmas roupas, comentando sempre os mesmos assuntos e partilhando os mesmos e inexistentes ideais. Mortos. Estão todos sobrevivendo em suas vidas vazias repletas de batons, carros importados, McDonalds e anfetaminas, esperando o momento certo para casar e repetir a mesma história de seus pais e seus avós. Houve um tempo em que os pais e os filhos entravam naquilo que os psicólogos de plantão na mídia chamavam de conflito de gerações, e que a melhor forma de acabar com este conflito seria o diálogo. Hoje não há mais conflito, não há diálogo, não há nada. São todos autômatos na frente da televisão, repetindo falastrices como “recursos da iniciativa privada” e “estudar com vistas ao mercado de trabalho”, e que cada um tem o direito de pensar e fazer o que quiser. Eis o que os gordos empresários, médicos e advogados, progenitores dessas pobres crianças projetam para os seus filhos: uma ecologia liberal, onde os pacientes pagam para os psicólogos e psiquiatras anestesiarem a angústia de vidas improdutivas e monocórdicas. Crianças. Lembro de o quanto a televisão era alucinante para mim, de quanto eu brincava imitando os personagens dos desenhos animados e dos filmes japoneses. Agora os adultos e os quase adultos imitam com perfeição tudo o que a TV mostra, não em brincadeiras, mas em suas vidas cotidianas. Esse papo de juventude rebelde acabou, se é que existiu algum dia...ei, o que é aquilo?
No auge da fumaça, dos decibéis e da cerveja quente aparece um par de seios, um par de olhos, um nariz, milhares de fios de cabelo negros, longos e brilhantes, trilhões de células epidérmicas lotadas de melanina ativada pelo sol recobrindo os músculos, o sistema circulatório, nervoso, glandular, reprodutor e tudo o mais que possa constituir o que os ocidentais chamam de CORPO. E o que é melhor: o tecido industrial que cobre esta maravilha genética o faz com total incompetência, e meus olhos ardidos de gelo seco podem vislumbrar um objeto quase celestial. E mais: ela dança olhando para mim, ou melhor, não dança, faz desenhos pelo ar, lança olhares furtivos e despretensiosos, uma harmonia de aproximações e afastamentos, o primeiro ato da ópera do acasalamento. Preciso de outra cerveja. Entro na cozinha e sinto o inebriante odor da erva sagrada. Ora, até que uns dois pegas não vão mal. Entro na roda, converso por uns dez minutos e volto a minha dança tribal. Ela continua lá, flutuando pela pista, volta e meia olhando fixo nos meus olhos. Preciso mijar. Há um enorme espelho na porta do banheiro e ali fico olhando para minha própria cara inchada e patética.
-Muito bem, Flávio Amorim, agora é tudo contigo.
É tudo comigo, e parece fácil. Será? Acho que fiquei paranóico, ela deve estar olhando para mim tanto quanto para qualquer coisa ou pessoa nas proximidades, afinal, é uma festa cheia de pessoas.
-Vamos, Flávio, isso é um jogo de cartas marcadas, e a tua está fora do baralho. Toma mais umas cervejas, vai comer um X e esperar a noite acabar em algum boteco.
E se ela se interessou realmente? Peço um cigarro, pergunto as horas, fico falando uma ou duas bobagens, vamos para algum lugar, damos uma trepada e aí acabou, vou para minha casa, assalto a geladeira e vou dormir na companhia dos mosquitos, na serena e animal felicidade do dever cumprido, sem nenhuma preocupação com o fim da ética, da política e do amor nas relações humanas. Quem sou eu para falar do mundo, afinal? Eu estou aqui, não estou?
Lá estava ela, chegando cada vez mais perto, o demônio medieval do sexo. Foda-se a sociedade, fodam-se os loucos e os grandes pensadores. Ela parece enfeitiçada, a vítima perfeita, lânguida, sensual, os olhos agora fechados, dançando cada vez mais lentamente, e acabando por despencar no chão duro e frio como uma velha ponte sendo implodida ou o pobre jagunço Adilson Maguila Rodrigues atingido pela lendária “tijolada com mel”, apelido carinhoso dado ao famoso cruzado de esquerda do gigante “Big” George Foreman, 45 anos e quase 200 quilos. Duas ou três amigas a erguem e levam para a rua. Uma figura patética, mal consegue manter os olhos abertos e balbuciar coisas ininteligíveis. Alguém tenta enfiar refrigerante goela abaixo, e, como ele vem, volta. Eu fiquei ali observando suas coleguinhas falarem com ela, tentando reanimá-la, colocá-la em pé, só para cair de novo e ficar pior. Passo a escutar murmúrios:
-Ah, meu Deus, ontem ela brigou com o noivo.
-Ela tá mal, eu acho melhor levar no HPS.
Noivo? Ela não devia ter mais que dezessete anos e estava noiva. Dizem que é a nova moda: voltar aos tempos do compromisso, das alianças, das boas relações entre as famílias e à fidelidade eterna, e, acredite, caro leitor, fala-se até em casar virgem. Agora os bons ideais familiares e puritanos remixados estavam ali, atirados no sofá, vomitando e dando vexame.
Agora nossa bela noivinha estava completamente inconsciente. Bom, já que todos os machões saíram correndo, alguém precisa fazer alguma coisa. “Oh, não, Alfred, o bat-sinal! A mulher gato está sofrendo uma overdose!” Ajudo as amigas a carregá-la e colocá-la em um táxi e fomos os quatro ao HPS.
-Tu és o namorado dela?
Branco. Está tudo branco de novo. Uma imensa mulher de branco está agora me fazendo perguntas. Onde está o comunicador? “Sr. Scott, transporte para um, agora!” Tudo o que quero agora é retornar à Enterprise, participar de alguma batalha contra os Klingons ou tentar convencer Spock de que é metade humano e que também possui emoções.
-Sr. Sulu, levantar os escudos e prosseguir em dobra espacial 4.
-O quê?
-Não, eu não sou o namorado dela, na verdade eu nem sei seu nome. Nós estávamos em uma festa e ela simplesmente desabou.
-Como é o teu nome?
“ James Tiberius Kirk, comandante da Enterprise”.
-Flávio.
- Pois é, Flávio, ela vai ficar bem. Apenas bebeu além da conta e tomou muitos remédios para depressão.
-Sei. Uma injeção de glicose, uma limpeza estomacal e já pode ser vendida como nova.
-Exatamente.
-Então eu acho que posso ir. Até mais.
-Até mais.
-Ah, por favor, não diga nada a ela sobre mim. Bom, enfim, não há nada para dizer, mesmo...
-Pode deixar.
Caio fora daquele lugar cheio de sobreviventes de guerras urbanas. Agora sou apenas mais um em busca de uma cerveja, e lá estava ela no S.O.S Bonfim, bem em frente ao hospital. Uma Norteña gelada, um cigarro e a noite agora seguia rumo a um final feliz.
E aí, vale a pena?

Sexo, drogas e animais domésticos

Sexo, Drogas e Animais Domésticos
AkilesCronópio
Mont’ Serrat é um bairro portalegrense relativamente tranqüilo e pacato, não havendo muitos motivos para preocupações radicais com a segurança. Pode-se chamar de preocupações radicais cercas elétricas, cacos de vidro nos muros, circuitos internos de TV, alarmes, cães do tamanho de cavalos e seguranças do tamanho de seguranças, enfim, tudo o que custe uma fortuna e sirva para proteger televisões e videocassetes. Dentro da monotonia cotidiana de qualquer bairro residencial, pode ocorrer um ou outro roubo de carro, ou algum assalto ou uma briga, mas nada muito freqüente. Quem tem Marco Maciel como vice-presidente certamente deve ter outras coisas para preocupar-se, afinal, para que o medo de ser roubado funcione é preciso ter alguma coisa para roubar, assim como para que uma televisão funcione é preciso pagar a conta da luz.
Por favor, que ninguém me pergunte em que zona fica meu bairro, pois, além de eu não ter a mínima idéia, esta história de zona não me agrada nem um pouco. Certa vez, na época do colégio, o pai de um colega perguntou se minha mãe era de Nova Prata, eu respondi que não, mas que nossa família vinha de uma zona próxima.
Pois é, uma vez o meu pai me levou na zona e nós encontramos ela...
Desde então, eu evito usar o termo “zona” (principalmente diante de velhos bebuns).
Era uma daquelas noites quentes, típicas das quartas-feiras dos últimos dias de novembro. Não por acaso, era quarta-feira, e novembro estava terminando. Na verdade isso não é nenhuma coincidência, pois eu não recordo direito quando era, talvez isto nunca tenha acontecido, e muito menos no fim de novembro e numa noite quente, mas, se acontecesse alguma coisa, eu gostaria que fosse nesse dia. Pois é, era 29 de novembro, uma noite tão quente que os dragões tinham que voar mais alto para pegar um ar fresco. Dragões? Sim, dragões. Algum problema com relação a dragões?
Lá estava eu, chegando em casa às onze da noite, cansado, entediado, chateado, molestado, sonolento, faminto, endividado e decididamente de saco cheio. O ônibus havia demorado mais do que o necessário para me irritar, e, na verdade, eu não queria ir para casa, nem para lugar algum.
Nunca suportei o calor das noites de fim de dezembro. Eu disse dezembro? Ora, há alguma diferença climática relevante entre as noites de fim de novembro e dezembro? E faz alguma diferença ser novembro ou dezembro? Eu nem disse que ano é, e nem vou dizer, afinal, não importa. Para suportar um pouco a temperatura, comprei meia-dúzia de cervejas no mercado próximo e sentei no pátio de casa, fazendo um esforço danado para não pensar. Atrás da minha suntuosa residência há um enorme prédio, tão enorme que parece uma parede entre meu pátio e o infinito. Minha antena de televisão não capta canal nenhum por causa daquele monte de concreto e condôminos. Com o advento da TV a cabo e graças a esta maravilha da arte arquitetônica de amontoar pessoas posso agora assistir programas musicais mexicanos, porto-riquenhos e trinidad-tobaguenses, e pagar por isso. Eu não entendo lhufas de espanhol, então mudo para canais que passam filmes americanos dublados em português e com legendas na pobre e castigada língua de Cervantes e dos turistas argentinos. Globalizemos, pois, globalizemos.
As cervejas estavam geladas e desciam rapidamente enquanto olhava para as janelas do edifício. Nada além de um imenso paredão cheio de donas de casa, maridos e crianças. Além, é claro, das luzes de Natal. Eles nos mandam tomar banho frio e morrer de calor sem ar-condicionado para economizar eletricidade e no Natal lançam concursos para ver qual casa fica mais iluminada. Certamente estamos a mercê de futuras uzinas nucleares e vazamentos radioativos que logo deixarão tudo brilhando. Merry Christmas, cidadãos cancerígenos moradores de bunkers. Já imagino os presentes de Natal: luvas com seis dedos, óculos para três olhos, camisolas de chumbo... Será a geração raios-X (parabéns a você, leitor, que sobreviveu a este festival de trocadilhos infames e idiotices de mau-gosto, porém, é apenas o começo).
Em meio aos goles de cerveja e o bater de asas dos dragões, começo a escutar gritos e sons de coisas quebrando vindos do edifício. Vamos dizer que as vozes pertencem a três representantes da raça humana: duas fêmeas caucasianas, uma pré-púbere, outra já passando dos trinta e um macho (típico) entrando na crise dos quarenta.
-Filho da puta!-disse a mulher mais velha.
-Puta és tu-fala o grande macho-vou pôr uma roleta na porta do teu quarto.
-Não me bate, ai não me bate!
Coisas quebram e voam pela janela: um abajur, roupas, toalhas, revistas. Algo peludo é arremessado, não dando para identificar direito (o apartamento é no oitavo andar). Não sei por que, eu juro que não sei por que, resolvi investigar o que estava acontecendo. Saí para a rua e presenciei um espetáculo dantesco: velhas com bobs nos cabelos, velhos de pijama, taxistas, empregados de um supermercado próximo, crianças, mulheres, homens... Todos olhando para cima com a boca aberta ou comentando bobagens. Se você quer mudar o mundo deve pensar em duas coisas: a primeira é desistir, e a segunda é estar preparado para enfrentar algo mais do que exércitos ou a imprensa.
Nesse burburinho todo, um fala para o outro, que chega aos ouvidos de um terceiro, um quarto e um quinto, que por acaso sou eu. A polícia chega, entra no prédio, demora alguns instantes e volta triunfante: o marginal foi preso em flagrante batendo na mulher. Bom, depois descobri que a história não era bem assim. O que aconteceu é que naquele apartamento morava uma mulher que recebia homens em casa, e não para tomar chá ou ver novela. Junto com ela morava a filha de doze anos, que como a maioria de nós, é oriunda de uma entre tantas relações sexuais que o ser humano tem em sua curta, porém entediante, vida. Naquela noite, certamente alguém resolveu reclamar seus direitos do consumidor de uma forma, vamos dizer, enfática.
Não sei o motivo da surra (se é que tinha motivo), mas fiquei atônito quando vi aquela massa de pêlos e sangue estatelada no playground do edifício. Um gato. Aquela coisa peluda que eu vi ser arremessada pela janela era um gato preto e gordo, que agora fazia parte do piso. Não havendo mais nada para fazer ali ou em qualquer outro lugar, voltei para casa e esperei a noite passar para começar outro dia, e assim seguia o ciclo do sol e do tempo entre as janelas empoeiradas e a triste e consoladora idéia de que tudo isso vai acabar.
Epílogo
Não faz muito tempo que eu sou um gato. Na verdade, não sei direito, afinal, gatos não sabem sequer ver as horas. Minha vida era relativamente tranqüila, minhas donas me alimentavam sempre e cuidavam bem das necessidades básicas, que não são muitas, pois gatos não vêem TV, não usam cartão de crédito e não vão três vezes por semana ao analista (nem falar, nós falamos...).
A única coisa estranha eram as pessoas, também humanas (creio eu) que visitavam o apartamento com uma certa freqüência. Anões, japoneses, anões japoneses, halterofilistas, trapezistas, estudantes universitários e até escoteiros conviviam ali em plena harmonia. Eu não entendi ainda por que aquele baixinho de bigode se irritou e resolveu espancar minhas donas. E o que é pior: ele me pegou pela cauda e começou a bater na mulher... comigo. Agora que eu entendi a expressão “só dando com um gato morto na tua cabeça”.
Bem, aqui estou eu voando em direção ao chão. Não tem problema. Gatos não sabem o que é a morte. Só espero que haja bastante leite e uma boa caixa de areia. E nenhum anão.

A Carne e a terra

A Carne e a Terra

I- Apresentando o espectador/narrador/personagem imortal:
O Vampiro Samael
Confesso aos leitores que iniciei minha participação na história a seguir por mero desejo, simples curiosidade. Sou imortal, ou melhor, não sei como nem quando vou morrer, ou nem sei se já morri, mas continuo existindo. Mas afinal, o que é a existência? Será este conjunto de memórias organizadas em torno de um corpo, que dão esta sensação de que há um mundo fora de mim? “Vivi” todo o tempo possível ou pelo menos o impossível a qualquer ser humano. Tenho quase cinqüenta mil anos, provavelmente nasci em uma época e cultura que sequer conheciam a linguagem verbal e muito menos a complexa escrita. Lembro-me muito pouco, pois já estamos no ano 2003 do calendário usual, vivenciei (estive “vivo”...) praticamente todos os anos da humanidade. Não de sua história, pois ela é fruto do que apenas alguns homens puderam escrever, difundir, guardar e comunicar. A história é transcendente, a humanidade repousa nos porões da concretude. Não sei como surgi, mas tampouco os mortais sabem de onde vieram, somos todos miseráveis órfãos cósmicos de origem incerta e memória curta. Caminho, vôo, nado, rastejo , chafurdo, perscruto este planeta chamado “Terra” por muitos humanos desde tempos tão absurdos e remotos, que eu próprio reconheço esquecer às vezes que o calendário mortal é arbitrário. No início eu falava em curiosidade, minha mestra, única da qual nunca me esqueço, pois tudo que faço é aprender e aprender cada vez mais.
Algum humano diria que eu seria a história viva da humanidade, mas, se me perguntar alguma coisa poderá surpreender-se com a resposta. Com a alegria de uma criança brincando na água contarei histórias sobre a sonífera maciez ruidosa mesclada ao branco azulado cintilante de uma lâmpada fluorescente, ou quem sabe descreverei a violenta atividade cinética dos cacos de vidro no exato momento em que um copo de cristal atinge o chão espalhando bilhões de átomos. Nunca, pelo menos em minhas observações, vi um fenômeno repetir-se, ainda que o tenha observado incontáveis vezes. Sempre tenho histórias para contar sobre coisas ínfimas mas que possuíam sempre características próprias, algo sempre é diferente. Interessante. Já os mortais sempre insistiram em criar fenômenos eternos, reversíveis, absolutos, ideais.
O “HUMANO”, ele chama-se assim , inventou uma versão acelerada de sua história pela cômica e imaginativa ciência arqueológica, e suas admiráveis equações para calcular a idade da Terra, pela medida do tempo da morte ou vida de certas moléculas. Ciclos, o tempo é uma sucessão de ciclos observada pelo humano, inclusive pelo seu próprio. É óbvio que nasci bem antes da ciência matemática, mas sua grande aceitação por toda humanidade engendrou uma máquina coletiva de fortes engrenagens subjetivas. Durante muitos anos o calendário foi a âncora da existência, e ainda é, apesar de estar sofrendo mudanças não na sua forma, mas na maneira como é percebido. Repito, leitores, repito, sou muito curioso. Experimentem beber sangue algum dia, creio que muitos já beberam em uma picanha mal passada ou uma galinha ao molho pardo, mas sugiro que pensem no gosto do sangue, e matem a fome com ele. Eu descobri que a vontade nunca é por sangue em maior quantidade, e sim por sangue diferente.
Meu cérebro está funcionando a uma velocidade altíssima, e é capaz de aprender cada vez mais e mais rápido. Contrariamente aos atuais processadores de informação mecânicos utilizados pelos mortais, quanto mais informação recebo, mais rápido fico. Uma piada infame: sou tão rápido que termino de colocar os tênis antes de colocar as meias. Na verdade detenho o domínio das velocidades. Posso ser também lento como uma estátua, tão imóvel que o mundo ao meu redor passa a andar mais rápido.
Já transcendi quaisquer barreiras de espaço, posso estar onde quiser e na hora que quiser. Tenho hábito de dormir, mas já fiquei acordado durante vários anos, observando sequóias brotarem e ficarem petrificadas, o delicioso, intenso e silencioso movimento da seiva jorrando por gigantescas tubulações vindas do alto das folhas, que deixam-se fecundar pela intensa luz solar. As árvores são uma memória que nunca deixará meus sonhos e pensamentos. Tomei consciência do meu próprio mal, da violência de me alimentar do sangue, a seiva humana, de maneira cruel e indiscriminada, observando o fim da ilusão de imobilidade de uma árvore. Em sua ansiosa velocidade de raciocínio e organização o humano é capaz de descrever linear e aceleradamente este processo, (fotossíntese) a partir de ciclos químicos, e suas quebras e seqüências. Talvez tenha desenvolvido esta fúria descritiva por maravilhar-se e sentir-se estranho ao deparar com seres que usam como energia a luz do sol, oferecem moradia pacífica a outros seres, bem como compartilham seus nutrientes em troca de transporte de suas sementes na forma de deliciosos frutos. Durante boa parte da minha existência fui uma fera bestial e sedenta por sangue, especialmente o humano, e por morte.
Em alguns lugares aproveitei-me da idolatria humana e criei seitas que prestavam cultos sangrentos através do sacrifício de mulheres jovens e virgens, ou criminosos fortes e robustos. Acrescentei à imagem do demônio minhas enormes presas sangrentas e meu olhar feroz de predador noturno. Minha substância corporal, quando “jovem” era mais mole que a dos mortais e dissolvia-se diante da venenosa luz solar. Foi minha época mais faminta, meu corpo ardia por sentir o calor salgado do líquido vermelho escorrer pela garganta. Hoje, meu corpo, ainda que mantenha exatamente a aparência jovem de um mortal, transformou-se em uma matéria dura, um processo semelhante à petrificação das árvores.
Também já tive sonhos que duraram décadas, mas, para mim, foram poucos minutos. De tempos em tempos, e já observei também em outros da minha espécie, sinto um invencível impulso de isolamento, tão intenso que cavo túneis de centenas de metros de profundidade para entrar em máximo contato com a Terra, o sufocamento, a imobilidade. Agora mesmo estou mergulhado em um imenso lençol d’água, e meu corpo parece ter a minha idade, esquelético, podre, repleto de feridas pustulentas. Nas profundezas da Terra é escuro, não há o que ver, a beleza torna-se supérflua. Na superfície, tenho a aparência de um jovem de 25 anos, nascido em uma época que a força bruta era condição primordial de sobrevivência, e que hoje tem um poder de percepção tal que debaixo de toneladas de rochas é capaz de ver tudo o que se passa em uma pacata cidadezinha do interior, mais especificamente em cima de um móvel antigo e empoeirado repleto de bugigangas. Entre elas havia um retrato, uma espécie de captação instantânea de uma realidade já acontecida, mas que retorna quando reconhecida ali. Uma captação de luz por uma película que é retransmitida a um papel. Luz, a mesma luz que atinge os olhos, constituída de freqüências luminosas que batem em um objeto e dirigem-se a outro capaz de captá-la. Meus olhos captam a luz e a misturam com esquemas de pensamento e memórias, formando imagens e pensamentos. Uma fotografia é um pedaço de papel, nada mais, se o cérebro não recobrir os olhos de informações. Mesmo estando seus sistemas de lentes completamente operacionais, os olhos sozinhos são completamente cegos.
Há algum tempo parei de beber sangue, e também de interagir com os mortais, mas a história dos Torteloni fez-me intervir, mexeu com minhas emoções, convenceu-me que eu já tenho poderes para transcender a máquina de matar que fui. Além do mais já está um pouco entediante ficar aqui parado no meio das rochas. Neste momento vasculho minhas memórias e lanço pensamentos em forma de um sutil campo magnético ressonante na freqüência média do cérebro humano .Recebo uma torrente de memórias e fatos caóticos mas que meu aparelho transcodificador organiza tematicamente em torno da histórias de uma família que aparece em meus olhos em três dimensões e em um razoável roteiro. Eis a foto, em preto e branco:


Pessoas da Foto:
Pai: Agenor Torneloni
Mãe: Marieta Torteloni
Menino de calças curtas: Cássio Torteloni
Menino com mãos nos bolsos: Germano Torteloni
Menina no colo: Leila Torteloni
Agenor e seus dois filhos morreram um dia depois do retrato ter sido tirado. Foram atingidos por um raio enquanto trabalhavam na roça. A enxada de Cássio atraiu uma descarga de 30.000 volts e os três foram instantaneamente carbonizados. Isso aconteceu há 26 anos. Hoje, Marieta e Leila sobrevivem lavando e passando roupas e fazendo faxina. No ano de1999, Leila conseguiu que uma rica família a aceitasse como doméstica por um bom salário e ainda ajuda na alimentação. Com o tempo, pode completar o seu supletivo de primeiro grau e passou a sonhar com um curso de secretariado, sem precisar parar de ajudar sua mãe. Sua primeira relação sexual foi há dez meses, quando encontrou o filho de seu patrão em uma festinha no único clube de sua pequena cidade.
Dez meses depois, dentro de um vaso:
Tubérculos elásticos agarrados entre si formam amarras tenazes tendo como meio uma mistura de minerais que agora juntam-se a moléculas de hemoglobina. Sangue, água a adubo penetram na permeabilidade das raízes e a seiva torna-se uma carne vegetal. A terra é fria
Dez meses depois, no banheiro onde está o vaso.
O frio faz tremelicar mãos pequenas e ásperas conduzem um frágil pedaço de papel higiênico que realiza sofregamente movimentos semicirculares. Rapidamente acaba dissolvendo-se em uma poça de água, sangue e líquido amniótico, no chão pedregoso de um imenso banheiro construído ainda na década de cinqüenta, que cede parte de seu espaço para alguns vasos de “comigo-ninguém-pode” O frio e o desespero fazem com que as dores que Leila sente desapareçam em uma massa amorfa de sensações. Inúmeras substâncias dançam pelo seu corpo e interferem na harmonia celular. Seu parto, infelizmente vertical, lançou seu rebento em direção ao chão de azulejos. Já não sabia mais se aquilo não era a melhor coisa a acontecer. Afinal, quem sabe? A criança estava morta. Mas afinal o que incomoda tanto na morte? Por que os mortos não têm direito à existência? Por que não deixam-nos como simplesmente “mortos”? Por que transformá-los em fantasmas e alegorias lógicas, entidades pavorosas e arrogantes, sentindo-se superiores aos humanos. A morte é um espetáculo ilusório. Imagino um homem que sofre uma parada cardíaca e é dado como morto pelos médicos, retirando-se amostras de seu corpo. verifica-se que boa parte de suas células continua viva. Ilusões, e nada mais, é disso que os terráqueos se alimentam.
Três Forquilhas
Três Forquilhas é uma cidade que expressa em seu nome certas nuanças de sua geografia que pertencem a épocas não muito distantes sob o tempo medido em horas, mas o rio que a atravessa continua dando origem a três riachos, cada qual bifurcando-se em um certo momento de sua trajetória, é por sua vez atravessado pelo tempo medido em acontecimentos. Metade do século XX bastou para que agricultores pobres, ousados e organizados, filhos e netos de imigrantes alemães e italianos, comprassem colônias baratas em terreno pedregoso mas com garantia de água potável. E muito trabalho nas roças de milho nutrisses das pocilgas repletas de animais fáceis de alimentar e fornecedores de uma carne versátil. Atentas às novas tecnologias trazidas pelas décadas de 40 e 50, uma das famílias que detinha o melhor pedaço de terra e de porcos investiu tudo o que tinha em um projeto de beneficiamento da carne suína, um frigorífico que, da mesma maneira que os filhos biológicos, recebeu o sobrenome Schbalsenkopf. Aristeu e Abrilina geraram Dionisio Schbalsenkopf, Ivair Schbalsenkopf e o Frigorífico Schbalsenkopf
Dentro do vaso, no banheiro
A porcelana lisa a impermeável delimita o contorno de um sistema vegetal isolado de outros. Um vaso de flores visto de seu interior é pura escuridão. Abaixo das raízes agora habitam pés, pernas, vísceras e um crânio mole amassado de tonalidades vermelho arrocheadas
. Três Forquilhas, onde fica o banheiro no qual está o vaso
Por sua enorme produção de suínos e derivados, Três Forquilhas é regionalmente conhecida como “A Terra do Porco” sendo seu grande e quase exclusivo evento turístico “A Porcada”, uma festa que, seguindo os costumes antigos, os maiores produtos das pocilgas eram abatidos, estripados e depelados, para que depois as mulheres os cobrissem e recheassem com iguarias e os introduzissem em imensos fornos de barro. O resultado era posto ao lado de mesas repletas de cucas, batatas, maionese e conservas, e devorado magnificamente entre goles de Chopp e Steinheger, a energia necessária para dançar a noite inteira a música de uma bandinha alemã que, inesperadamente, às quatro da manhã tocava “Another Brick on The Wall”.
O monstro
“A Porcada” do ano 2000 estava chegando a seu fim. Ivair, filho do Rei do Porco, já cheirou sua mesada da semana e “porqueava” abraçado à privada. não será difícil, como em todas as outras vezes, pegar seu jeep cherokee e dirigir até em casa. Lembrava da loira que havia comido meia hora antes naquele mesmo banheiro. Lembra apenas de algumas de suas trepadas, assim como alguns de seus treinos de Jiu-Jitsu na capital do Estado e dos rapazes da sua idade e tamanho que finalizou nos ringues. Porradas e trepadas, assim meu dom vampiresco capta as sensações vindas de quem conheceu Ivair. Uma das trepadas foi com sua empregadinha, para quem prometeu casamento. Agora ela estava grávida. Uma, apenas uma vez ele meteu naquela buceta, e um superespermatozóide, em uma atitude que confirma o princípio da incerteza, voou através da borracha da camisinha, passou pelo sangue, nadou ferozmente pela mucosa vaginal e cruzou heroicamente os pedaços do anel himenal, velejou pela trompa e atingiu o ovário tal qual os Hunos quebravam cabeças com machados. Aborto? Nem pensar. Sua família, tida como exemplar, ao descobrir a gravidez da moça, obrigou Ivair a casar! Ora, um vampiro narrador também sabe rimar! Engraçado, é engraçado, após uma centena de anos hibernando nas profundezas, observar no espelho do banheiro meu rosto jovem e de aparência inocente, meus olhos cinzentos e grandes como os de um gato, e meus cabelos surpreendentemente alinhados e macios. Para não chamar atenção “tomei emprestadas” as roupas de um rapaz da minha idade que estava na festa? jaqueta de couro, calça jeans e camiseta branca. Combinou comigo, assim como o Heavy Metal que escutei em um automóvel no lado de fora da festa, Black Sabbath. Quase que por reflexo, bebi o sangue do rapaz, Ora, creio que nunca é tarde para retomar velhos hábitos. Agora estou com fome. Olho para o canto e Ivair continua vomitando.
-Olá garoto, bebeu demais?
Ivair tira sua cabeça da privada e olha estranhamente para minha fisionomia tranqüila, aparentemente inofensiva.
- Não é da tua conta. Tu é viado, por acaso?
- Tsc Tsc Tsc, tanto dinheiro e você não passa de um animal, mesmo. Eu vim com uma mensagem: seu filho acaba de nascer e cair no chão duro. Eu posso salvar a criança, mas a mãe está assustada e precisa de proteção. Eu lhe ofereço uma escolha.
Seus olhos se arregalaram
-Ora, mas o que é isso? Como tu sabe disso? Fodam-se os dois, que morram os dois.
-Eu estou lhe dando uma chance de sobreviver. Posso matá-lo mais rápido que imagina
-Tu também vai te foder seu viado
120 quilos de músculos pularam em cima de mim tentando usar técnicas de torção e imobilização que na antiga Índia eram muito mais complexas e mortíferas, usadas apenas pelos melhores e mais honrados guerreiros, que além de artes marciais estudavam filosofia e religião. Hoje seus fragmentos são ensinados para adolescentes imaturos quebrarem suas cabeças em disputas de gangues. Seu ataque é facilmente neutralizável. Resolvi não usar meus poderes sobre-humanos. Controlo minha força e velocidade até que atinjam o nível de um mortal treinado em artes marciais. Durante alguns séculos observei monges chineses desenvolvendo técnicas profundas e complexas de luta, e de forma secreta, aperfeiçoei algumas e ensinei a alguns mestres. Com apenas uma esquiva e um leve toque, arremesso seu corpanzil contra a parede. Ele insiste , e ataca com a fúria e imprudência de um touro na arena. Eu sou preciso, flexiono minhas pernas na posição arco-e-flexa para dentro da sua guarda e com a “faca da mão” atinjo seu esterno, pressionando a caixa toráxica contra os o pulmões e o coração, impedindo-o de respirar. Puxo sua cabeça com violência e faço com que veja minha horrenda aparência vampiresca, meu olhar feroz e minhas enormes presas, que cravo em seu pescoço. O sangue cheio de adrenalina corre fresco pela minha garganta.
Ele tenta balbuciar alguma coisa
-Mas o que diabos é isso
Ora..
-Acertou na mosca, pode-se dizer que eu sou o diabo em pessoa, e vou te mandar para o inferno.
Ivair Schbalsenkopf morreu grunhindo como um porco. Não merece mais comentários.
No banheiro
Agora estou diante de Leila, que olha para mim aterrorizada, não sabendo se pede ajuda ou sai correndo. Muitas células do corpo da criança ainda estão vivas, ainda há tempo. Leila está em pânico, posso sentir seu cheiro acre e denso. Mas algo surpreende meus sentidos, como um borrifo de perfume, o perfume da tristeza e da pureza. Um cheiro morno, perturbador, lisérgico, entrou em minha mente, a força de seu corpo, de seus pensamentos e sentimentos intensos como se comandasse minhas ações. Olhei para sua pele branca, seu corpo alvo suave e magro, mas musculoso o bastante, os seios pequenos, mas a gravidez dera-lhes formato e volume. Seus cabelos são lisos e compridos por cima dos ombros, um radiante misto de fios castanhos e dourados da cor dos seus olhos. Linda, pequena e delicada como uma criança mas também forte e esguia como uma mulher adulta. Descubro que a amo intensamente, e que gostaria de passar minha eternidade ao seu lado. Sim, vampiros também amam, um amor igual ao dos mortais, só que com a eternidade real como limite.
Seu sangue foi para mim como o ambrosia recém tirado do forno, eu o misturei ao meu, e deixei que ela me mordesse. Este é o processo osmótico de nascimento de uma nova vampira. Meu sangue vai até seu corpo e é misturado com o que resta de suas hemáceas. Seu sangue foi substituído pelo fluido vampiresco. Ela fecha os olhos e grita estridentemente até quebrar todas os vidros num raio de 10 quilômetros, quase como uma bomba sonora.
São poucos os vampiros com tanto poder de controle e persuasão, e nenhum jamais foi capaz de alcançar minha mente, quanto mais dominá-la desta forma... Sinto minhas memórias sendo vasculhadas e copiadas avidamente. Eu não resisto. Uma jovem vampira selvagem, recém descobrindo seus poderes mentais, assim tornou-se Leila. É claro que ela é poderosíssima, mesmo jovem, pois é uma criatura minha, minha sublime filha das trevas, eu, Samael, o mais antigo e poderoso dos bebedores de sangue. Ela olha para o vaso onde havia enterrado a criança, um breve segundo de atenção e sua percepção capta o movimento das células do feto.
-Podemos salvá-la?
-Sim, mas ela está em um estado de morte muito avançado, e mesmo tornando-se imortal, jamais crescerá da forma humana do termo, assim como você também nunca envelhecerá. Na verdade nunca se sabe o que pode acontecer.
-Que assim seja.
-Então siga-me
Agarrei o vaso e com extrema velocidade voei até uma floresta próxima. Leila me seguiu, rapidamente adaptada a sua nova vida, ou nova morte. Introduzi minhas mãos no xaxim e retirei o feto, cravando-lhe uma de minas presas e bebendo seu sangue devagar. Fiz um pequeno corte em me dedo e deixei escorrer por aquele corpinho já cinzento e frio.
-Deu certo. Já posso sentir sua atividade mental primitiva Vamos enterrá-la.
Leila observara tudo com curiosidade.
- É verdade. E agora?
- Minha cara, a natureza é imprevisível e caótica, fornece-nos os dons mais variados. Neste caso creio que surgiu uma nova forma de vida. Veja!
Caules verdes e viçosos brotaram da terra rapidamente, e após atingirem uns trinta centímetros expelem flores vermelhas em profusão, além de espinhos afiados e prenhes de veneno. Um silvo agudo sinaliza que um dos espinhos e ejetado, atingindo um pardal azarado, que cai entre suas folhas... sua primeira refeição.
-Observe, Leila, o aparecimento de um vampiro vegetal, a Flora mitológica e mortífera, uma verdadeira obra de arte da natureza, uma inflorescência do Caos. Um ser concebido pela sua dor mortal e moldado pelo meu engenho milenar. Jamais haverá criatura tão bela, mortífera e singular.
Agora posso contemplar com mais calma a forma imortal de Leila. Seus olhos continuam com a mesma doçura, a pele adquiriu tons ainda mais suaves, o cabelo ficou mais radiante. Se ambos fôssemos mortais, ela seria uns seis anos mais velha que eu, embora aparentássemos a mesma idade. Ela olha fixamente para mim, transmitindo sutis ondas de calor, que batem em meu corpo e entram em ressonância com meus pensamentos.. Nosso amor sobrenatural irradia-se em todas as direções, agita os pássaros, os insetos, os pequenos roedores e faz brotar as flores do campo. Uma pequena chuva começa a cair, seguida de raios de sol e um belo e esplendoroso arco-íris. Felizes como um casal de namorados, caminhamos pelas flores, rimos e brincamos até que ela pára e sente um cheiro que faz seus olhos ficarem demoníacos.
-Samael, estou com fome, com muita FOME.
-Hehehe, então vamos caçar, minha querida, há muita comida disponível Vamos ver quem chega primeiro na cidade. E lembre-se de deixar as crianças para a sobremesa.
Não adianta. Eu sou Samael, o feroz e lendário vampiro, e não há nada que eu faça melhor que beber sangue.

Mordidas 2

IV
Nesta morte entediante é preciso inventar sempre novas diversões dentro do caos de se poder fazer quase tudo e as drogas serem substâncias inócuas. Desde que descobri que podia voar, meu hobby é quebrar a barreira do som e mergulhar no Guaíba como um meteoro. Não há nada mais pueril, mas faz com que se pare de pensar um pouco. Desde que encontrei uma fêmea da minha própria “espécie” minha dualidade humana parece ter voltado como se estivesse vivo. Aral é uma vampira angustiada, e a angústia parece ter lhe tirado os escrúpulos. Ambos somos apaixonados e temos apenas um ao outro, mas ela diz que sou um fraco, que tento misturar-me aos mortais, que tento recobrar minha antiga vida. Na primeira vez que nos vimos, nenhum de nós sabia que o outro era um vampiro, e ela estava fantasiada de prostituta à espreita de alguma vítima e pulou sobre mim como se eu fosse o manjar dos deuses. Aral age como se fosse uma deusa, odeia os mortais, e não pensa nas conseqüencias de seus atos. Sua fome de sangue é aumentada por seu ódio, seu rancor, sua arrogância, sua frustração por não saber mais o que é ou de onde veio. Eu sou sua única referência, e não posso dar as respostas que quer. Não sabemos como morremos, e nossas vidas anteriores são meras lembranças. Nunca conversei com Aral sobre isso. Talvez ela tenha sido mãe de muitos filhos ou alguma líder política, e agora é um ser assexuado, pois vampiros não procriam. Alguém que orgulhava-se de dar a vida ou lutava pela vida humana agora transformou-se em um ser de morte.Eu? Em minhas lembranças só vejo indiferença. Para mim é melhor estar morto, e, como diria Machado de Assis, “não tive filhos, não deixei para nenhuma criatura o legado da nossa existência”. Ela odeia tudo o que sou, o que faço, meus sentimentos, meus atos, e mais de uma vez chegou a ir para bem longe. Mas o mundo é grande apenas para os vivos, e Aral sempre acaba voltando, pois o amor para os vampiros é igual ao dos humanos: uma prisão sem portas. Já faz dois dias que está desaparecida. E foi justamente aqui no rio que comecei a sentir um cheiro familiar.

V
O anoitecer cinza-chumbo parece piorar ainda mais a vida de um homem que está parado em meio a ventos frios e molhados, e seus olhos vislumbram as ondas escuras de um rio triste e fétido. Nos bolsos de seu casaco encontram-se umas poucas moedas e cigarros molhados, que a esta altura já estão dilacerados e misturam-se a água que faz seus ossos tremerem. É necessário sair dali, sair do mundo. A chuva dá uma pequena trégua e a brisa gélida traz um odor forte e familiar. Carlos Ribeiro, em sua vida anterior que está prestes a terminar, já encontrou muitos cadáveres, que chegaram a esse estado das mais variadas formas. Aquele corpo que estava na ciclovia da avenida Beira-Rio era de um mendigo e tinha indícios de um ataque feito por um cachorro dos grandes, podia-se ver claramente a marca das presas em seu pescoço. No entanto, havia pouco sangue esparramado no local, os ferimentos eram simétricos demais e não havia sinais de luta ou marcas de patas. Algo ou alguém havia segurado firmemente a vítima, mordido o pescoço e bebido boa parte do sangue... algo desloca-se às suas costas. O reflexo e os dias de desespero fazem com que saque sua arma e dispare quatro tiros. Acertou dois. Perde o equilíbrio e despenca no meio da lama. Um rápido lampejo de luz e antes de desmaiar Carlos enxerga dentes pontiagudos vindo em sua direção.
Sons. Música. Iggy Pop?. Foi um sonho. Carlos agora sentia o calor das roupas secas e dos cobertores. Tudo foi um longo e terrível pesadelo. Abre os olhos e enxerga as paredes do quarto, a janela, as cortinas e o ar-condicionado. Não é o seu apartamento. Há uma cadeira ao lado da cama, e nela está sentado um jovem robusto, de longos cabelos e grandes olhos azuis. Provavelmente o rapaz o achou desmaiado e o salvou de morrer de pneumonia.
-O..Olá, acho que preciso agradecer... mas os corpos?
-Que corpos?
-Eu encontrei um corpo na ciclovia, um mendigo que fora atacado por algum psicopata que também me atacou, mas acertei dois tiros à queima roupa...
-Havia um só corpo, e está aqui-abriu o armário e lá estava o mendigo-Não se preocupe, eu tive o trabalho de embalsamá-lo e envolvê-lo em PVC.
Carlos procurou sua arma. Não achou.
-Mas...não pode ser... o que este corpo está fazendo aí...
-Ninguém vai sentir falta dele.
-Mas.. a pessoa que me atacou, não foi quem o matou?
-Um assassino não ficaria ao lado de um corpo procurando outra vítima. Eu sei quem atacou você, e tenho certeza de que não foi ela que matou esse pobre-coitado.
-Ela? Foi uma mulher?
-Bom dizer “ela” pode se referir a tempestades, leoas, árvores, melancias, bruxas, à morte, abelhas, baleias, nuvens.
-Sim, mas “ela” é humana, eu presumo.
-Você já leu Dante?
-O quê?
-Dante Alighieri.
-Sim, eu li “A Divina Comédia”
-Lembra do nível intermediário entre o mundo e o primeiro estrato do inferno?
-Onde estavam as pessoas que não fizeram nada de mal, mas que também não realizaram nada para o bem dos outros.
-Um limbo de indefinições, de condenados que não sabiam o crime que haviam cometido.
-Muito bem, mas o que Dante tem a ver com isso?
-Você mesmo disse que acertou em cheio dois tiros em alguém, ou algo, que o atacou.
-Sim, mas, pelo jeito, eu errei.
-A velha lógica: todos têm a obrigação de morrer com dois tiros à queima-roupa. Não, você acertou os dois tiros em cheio, uma bala atravessou o coração e, a outra, o pulmão.
-E “ela”não está morta...
-Não, e seus ferimentos cicatrizaram na hora. Se eu não tivesse aparecido para impedi-la você certamente estaria sem seis litros de sangue. Sim, somos vampiros.
-E há alguma razão para eu ser salvo?
-Sim. Em primeiro lugar não devemos matar a esmo. É uma questão política. Aral não estava com fome, mas apenas brincando de caça. Ela está passando por uma crise. Precisamos ser discretos, e, a polícia iria desconfiar de corpos de duas pessoas mortas da mesma forma no mesmo lugar. Em segundo lugar, acompanhei seu trabalho como policial e agora como detetive particular. Preciso de sua ajuda.
-Pelo que sei sobre vampiros, não sei em que posso ajudá-lo.
-Meus poderes são quase ilimitados, mas eu não sou humano, não posso sair de dia, eu não penso como um humano, meu limite é a eternidade. Além do mais, podemos formar uma boa dupla: seus conhecimentos práticos em investigação aliados a minha imortalidade nos darão acesso a tudo. Eu posso conseguir dinheiro, capturar pessoas, fazer o trabalho sujo da investigação. Os vivos e os mortos trabalhando juntos.
-Interessante. Eu achei que seria transformado em um vampiro.
-Não, isso acontece só na ficção. Eu, por exemplo, não tenho a mínima idéia de como transformar alguém em vampiro.
-Então é aí que entra Dante, vampiros vivem um limbo, não estão mortos, não sabem de onde vieram, estão condenados a sentir a vida inteira a angústia de toda humanidade, o estágio intermediário entre o mundo e o nada.
-Exato. Inclusive o termo “vampiro” vem da mera semelhança com as histórias de terror. Vampiros não existem, são apenas literatura e cinema.
-Você tem algum dinheiro?
-Tenho. Você deve estar com fome. Eu posso sair e pegar uma pizza em tempo recorde.
-Não, eu já cansei de ficar aqui deitado, vamos a algum lugar comer um X.
Aral

Ribeiro ainda não estava conseguindo entender muito bem o que estava acontecendo. Andava agora pela rua ao lado de um ser que estava morto, mas era imortal, que havia salvo a sua vida, mas poderia tirá-la sem a menor dificuldade e culpa. Dois anos de alcoolismo e solidão pareciam agora ser vistos em meio a todo o universo, onde a dimensão de nossas vidas ora curtas e ora longas é tão pequena que deixa de existir. Diante daquele rapaz com roupas escuras e olhar interrogativo e selvagem estava cristalizado o caos, as infinitas possibilidades, as concentrações de energia que circulam pelos sentidos e pelas ausências de sentido. O mundo agora parece elástico, ora muito pequeno ora muito grande, dobrando-se sobre si mesmo, diferenciando-se...
Passam por uma rua escura na qual havia um terreno baldio e deste terreno baldio em uma rua escura pessoas começaram a sair lentamente. Homens grandes e fortes e armados, em grande quantidade e, aparentemente, com muita raiva. Os velhos reflexos levam a mão ao coldre, mas não há coldre nem o que deveria haver no conteúdo de um coldre. Agora as companhias formavam uma parede. O novo parceiro que de tão novo nem o seu nome Ribeiro sabia ficou parado, apenas observando. Parecia estar sentindo cheiros, sons, texturas, velocidades. Uma espécie de transe.
- Samael.
-Quê?
-Meu nome é Samael. Dez páginas e só agora o leitor sabe o meu nome.
Os inimigos avançaram. Na verdade nem Ribeiro nem Samael sabiam o por quê daquele ataque. Talvez o escritor dessa história estivesse sem muita inspiração e quisesse colocar alguns conceitos com um cenário de luta ao fundo.
Antes de qualquer um pensar em se mexer desce dos céus uma criatura de doces e lisos cabelos negros, esguia, precisa. Esta criatura dá início a uma dança celestial, de movimentos simples, despretensiosos, eficazes, uma harmonia composta por ossos quebrados, pescoços deslocados, pequenas ações que acabam com vidas que, na verdade, são também feitas de pequenas ações.
impávida que nem Mohammed Ali, tranqüila e infalível como Bruce Lee
Eram quase trinta sujeitos armados com pistolas, metralhadoras e punhais que foram ao chão como personagens de um antigo jogo de fliperama. Poucas vezes Carlos Ribeiro havia visto uma cena tão violenta, e nenhuma vez havia visto algo tão elegante, poético e harmônico.
Aral deixou por último o maior de todos, e ficou segurando-o pelos cabelos. Olhava fixamente para Samael, que aproximou-se lentamente. Os olhos de ambos brilhavam como estrelas vermelhas e verdes, e quatro pares de presas penetraram no pescoço do corpo que estava ali, experimentando o pânico. Olhos nos olhos, separados pela fonte do líquido vital que agora compartilhavam, os ferozes vampiros comungavam com a vida, com Eros, aquilo que os impedia de diluir-se no cosmos. O ódio torna-se fome, e a fome, fome de vida, amor. Os seres de morte agora irradiavam uma tênue luz púrpura, uma fragrância de jasmim e ondas sonoras que formaram uma música
The Rain Song (LED ZEPPELIN)

This is the springtime of my loving-
the second season I am to know
You are the sunlight in my growing-
so little warmth I felt before.
It isn't hard to feel me glowing-
I watched the fire that grew so low.
It is the summer of my smiles-
flee from me Keepers of the Gloom.
Speak to me only with your eyes
it is to you I give this tune.
It isn't hard to recognise-
these things are clear to all from
time to time.

Talk Talk-
I felt the coldness of my winter
I never thought it would ever go
I cursed the gloom that set upon us
but I know that I love you so
but I know that I love you so.

These are the seasons of emotion
And like the winds they rise and fall
This is the wonder of devotion-
I see the torch we all must hold.
This is the mystery of the quotient-
Upon us all a little rain
must fall.


M.

` Aral, Samael e Ribeiro agora caminham pela avenida Oswaldo Aranha em direção à Lancheria do Parque. Ribeiro lembrou que é humano e estava a dois dias sem comer.Aral estava de bom humor e até pediu desculpas a ele por tentar matá-lo, e fazia várias perguntas sobre o trabalho de detetive particular
-Tu és o primeiro detetive particular que eu conheço, na verdade o segundo, porque o primeiro foi Ed Mort.
-E quase sou o último... bem, na verdade o Ed Mort representa bem nossa profissão: pouco trabalho, muita encrenca e quase nenhum dinheiro.
-Mas o teu nome aparecia bastante nos jornais
-Isso foi quando eu trabalhava como delegado na homicídios. Naquela época eu tinha sorte e talento. Resolvi muitos casos complicados e famosos.
-O que houve com a sorte e o talento?
-Transformaram-se em doze tiros e uma esposa e dois filhos mortos por alguém da própria polícia que também deu um jeito de tirar meu emprego.
-Esperem..-Samael levantou o nariz
-Também sinto um cheiro muito forte. Sam, há vários corpos próximos a nós, e ainda estão quentes.
-O cheiro vem da Lancheria.
Entraram e Ribeiro nunca irá esquecer o que viu ali, na velha Lancheria do Parque, lugar que fez companhia a sua solidão e o alimentou em vários momentos difíceis. Um lugar saudável, tradicional, onde várias tribos se encontravam para comer um X e tomar cerveja. O chão agora estava pegajoso, o ar estava quente e tinha cheiro de açougue. Corpos. Estudantes, artistas, trabalhadores, cozinheiros, agora eram corpos. Todos os tipos de cadáveres estavam dilacerados e amontoavam-se sobre o balcão e as mesas, sob a chapa haviam orgãos e quaisquer pedaços de pessoas. Não há o que vomitar no estômago. Samael não parece surpreso.
-Aconteceu o que eu imaginava. Meu caro Ribeiro, eis um dos motivos de nossa parceria...
-Muito bem morceguinho, quer dizer que tu sabe algo que eu não sei.
A voz vem da porta. Pequenos pontos de laser anunciam duas metralhadoras que anunciam uma figura trajando uma armadura negra, cujo rosto é a máscara da tragédia. Aral olha feio. Samael está tranqüilo.
- Olá M. Veio rápido.
-Eu tava na cola desse desgraçado. Essa não é a primeira travessura que ele faz. Há dois dias que sigo uma imensa trilha de corpos sem sangue e nenhum rastro. Vejam, não faz mais de cinco minutos que ele fez essa festa. Parece alguém que eu conheço, não é, Aralzinha?
-Ora, cale a boca seu merdinha ou eu bebo teu sangue com canudinho.
-Pode vir, meu bem. Ei, quem é o grandão, o lanchinho da noite?
-Este é Carlos Ribeiro, detetive particular. Nós encontramos juntos a primeira vítima, há exatamente dois dias, perto do Gasômetro.
-Carlos Ribeiro, hein? Finalmente nos encontramos.
-Eu te conheço?
-Não conhece o autor, mas conhece a obra: o massacre do Banrisul.
-O quê? 200 mortos entre assaltantes, civis e policiais e dois prédios inteiros destruídos...
-Algo verdadeiramente estético, mas muito arriscado.
-Por que fez aquilo?
-Ora, é o meu trabalho: matar pessoas, sem distinção de credo, raça, cor ou religião. Eu apenas faço minha parte no imenso xadrez cósmico. Eu sou Tânatos, eu sou Morte, ninguém é mais humano que eu. Akiles Cronópio escreveu um conto sobre esse massacre
A sensação de Ribeiro agora era de realmente estar sonhando.
-Mas chega de papo, a polícia vai chegar em breve e precisamos limpar os indícios. Muito bem, caros vampiros, abram o gás e desencapem todos os fios elétricos que acharem. Eu e Ribeiro vamos para fora.
Em poucos minutos tudo estava feito,e M. pressionou um botão no seu cinto que transformou suas metralhadoras em um lança- chamas. As armas passaram a expelir flores roxas, os mortos estavam vivos, aliás nunca estiveram mortos e nem existiam. A Lancheria agora estava funcionando a todo vapor, mas mudava de cor a todo instante.
-Hei, o que houve...-M. começou a mudar de voz, e sua máscara transformou-se em um rosto arredondado, cabelo loiro e ralo, óculos de aro preto-...E aí gente? Quanto mistério, hein? Vai ser difícil terminar essa história.
Aral e Ribeiro estavam atônitos. Samael parecia saber de tudo:
-Akiles Cronópio, eu presumo.
- Em carne e letras. Alguma pergunta para o criador?
-A de sempre.
-O conto é vivo, escapa da minha própria vontade. Cada pessoa que o lê faz suas próprias significações e constrói suas próprias imagens. Eu mesmo sempre mudo algumas concepções. Vocês, meus caros, são seres caóticos, construídos por palavras e idéias que já não existem mais, transformaram-se, estão em eterno movimento. Como tudo no Universo, nada além de matéria e energia que iludem nossos sentidos que também são matéria e energia.
Akiles derreteu, e tudo em volta desmanchou-se em uma imensa massa líquida infinita e multicolorida, que converteu-se em um minúsculo ponto, do qual saiu uma linha que formou outro ponto e outra linha, e outra e outra. Samael, Aral e Ribeiro agora eram pequenas partículas em movimento por uma rede intensa, transformavam-se em impulsos elétricos, figuras, sons, palavras em uma tela, movimento de dedos, teclas, olhos, raios de luz, o fluxo interminá...bananagirassolisqueirovisoreletrdom’gh;ajbu’[qo1-0294#@90n9i(,09h4#@45poliiqaiojbvgvipguwg6`0~092imnan6%-=-[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[+=[][“;AsWEEF/???0EIOJEIOMOEJPJPOJPJIPJPJPEJEKJRiejrKD0293894848855J5JFJJRUIR099sslllskieuqwytert325$59270-$%^&*()(&^#!@!#@$$#%$^#$%^%$#^&$%^*$*$^&*$&*$&*%^&*%^&____-_--__----___--__-----_---_---_---------------------------------------______________--------=---------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- --------------------------- -------------------------- ------------------------------------------------------------------------------------------------------- ------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- ---------------------------------- - -

Mordidas

Mordidas
I
Velocidade. É isso o que mais impressiona. Em questão de segundos posso atravessar Porto Alegre usando meus próprios pés, e nem sequer altero meus batimentos cardíacos. Sim, estou morto há muitos anos, e, em termos práticos, já deveria ter virado pó e estar dentro de um caixão. No entanto algo aconteceu, e não consigo me lembrar. Posso recordar a maior parte das coisas que fiz em vida, mas não tenho a mínima idéia de como morri, ou não morri, enfim, como cheguei em tal situação. Tudo o que posso dizer é que me sinto muito bem assim. As coisas melhoraram muito. Não fico doente, não envelheço, os poucos ferimentos que sofro cicatrizam rapidamente, ganhei músculos, meus cabelos crescem mais depressa e todos meus sentidos estão superaguçados. Até o raciocínio e a atenção funcionam muito acima de qualquer ser humano. Já treinei com ratos de esgoto. Posso perseguir um roedor por quilômetros de tubulação, durante dias, sem perder a pista, entre milhares de outros animais, sons e cheiros.
Acredito que todo esse acréscimo seja por não me preocupar mais com as coisas da vida, aliás, estou fora dela. Hoje posso ver tudo de cima, e tenho a eternidade para estudar e pensar tudo com muita calma. Não preciso de dinheiro, e, se por acaso precisar, basta pegá-lo. Posso entrar em qualquer lugar sem ser percebido, ver televisão, ouvir sobre a vidas das pessoas, seus momentos mais tristes, mais alegres, mais íntimos, escutar ligações telefônicas, e, como bom vampiro pós-moderno, posso conectar-me a Internet apenas com um pouco de concentração. Com tanta informação ao meu dispor, não achei o mínimo registro da minha morte nem da minha vida. Não há mais família, amigos, colegas, namorada... apenas lembranças,que aparecem como filmes que vi há muito tempo.
É claro que há pequenas desvantagens e acredito que o leitor já saiba quais são: só posso sair à noite, não posso comer alho e as drogas não fazem efeito em mim. A única que eu nunca entendi é a do alho. Ah, é claro, o principal: preciso beber sangue humano ainda quente para viver, ou seja, tornei-me um assassino serial que alimenta-se do sangue de suas vítimas. Calma, não saio por aí matando crianças. Conseguir comida é uma arte que exige técnica e extrema discrição. A polícia não me assusta nem um pouco, pois posso fugir rapidamente para um lugar ermo e lá ficar por uma centena de anos, mas é bom manter distância dos tiras e da imprensa, do contrário nunca terei paz e acabarei sendo confundido com Drácula ou com Lestat. Assim, quando tenho fome, basta andar em alguma rua escura e esperar que as presas que pensam que são predadores venham até mim, depois, é só dar um jeito de eliminar os corpos e ninguém vai sentir falta. Confesso que não é uma tarefa das mais agradáveis, mas, enfim, regras são regras, ainda que violem outras regras.
Como deve acontecer com poucas pessoas, tive uma oportunidade radical de mudar meus rumos, de ver o mundo de fora. Agora presto muito mais atenção em tudo, tenho tempo para aprender, estudar, refletir. Vou ao cinema, a bares e boates, converso com pessoas e sinto o prazer de inventar histórias de vida, profissões, dramas, ou coisas assim. Hoje vivo a própria inexistência, o não-ser que também é ser-tudo. Algumas vezes já dei uma de vampirão clássico: ir a uma festa, olhar para a garota mais linda e rica, hipnotizá-la e fazer uma bela refeição, ainda que com gosto de McDonalds ou anfetaminas. Não sei por que, ou talvez seja óbvio demais no contexto de vampiros homens, mas o sangue de mulheres jovens faz com que todos os meus poderes aumentem muito e fiquem quase fora de controle. A última vez que mordi uma adolescente saí voando pelos ares como um míssil e depois tive que caçar todos os que viram a cena. É muito arriscado se expor deste jeito.
II
Agora ando pela Farrapos, uma avenida grande e iluminada, onde ficam as grandes boates, mas que é circundada por pequenas ruelas escuras, lugar dos travestis e das mulheres que já estão “passadas do ponto” para ocupar um lugar de “strippers”. O tempo, a miséria e a concorrência transformam as “modelos”, “massagistas especiais” e “garotas de programa” em simples “putas”, largadas na calçada entre carros, garrafas voando, andares, olhares. O curioso é que a Farrapos, durante o dia, é uma avenida estritamente comercial: lojas de autopeças, casas lotéricas, postos de gasolina, movimento nervoso dos ônibus e caminhões. Agora há um universo de cores, sons e cheiros da noite festiva e erótica. Aqui estou eu entre as esquinas, em uma noite agradável de sábado, observando tudo e à procura de um lanchinho. Alguma coisa parece estar vindo em minha direção. Máquinas de matar como eu têm boa intuição. Olho para trás. Um enorme Galaxy negro desliza pelo asfalto em alta velocidade. Um pequeno movimento para a esquerda e estou fora de um perigo que seria inexistente. Barulho de freios e cheiro de borracha queimada. Cinco chineses descem do carro, provavelmente vindos de algum filme ruim dos anos 70. Roupas longas, caras de deboche, cabelos à moda Beatles. Um vampiro e cinco clones do Bruce Lee em Porto Alegre nos anos 90. Nesta hora é que retomo a idéia de que, na verdade, sou um personagem de alguma história em quadrinhos ou um livro de ficção de algum maluco que resolveu juntar personagens de várias outras histórias em uma única e mal escrita.
Meus companheiros inexistentes atacam. As artes marciais foram criadas para tornar os soldados mais rápidos, ágeis e precisos, e os clones que me atacam agora são mestres em Kung Fu. A questão é que não há nada na face da Terra mais rápido, ágil e preciso que eu, e tenho ainda o bônus de não precisar de defesa. Uma bela cena forjada por chutes, socos, saltos mortais e quase trinta litros de sangue com gosto de ópio barato e frango shop suey. Enterro os corpos em um terreno baldio e vou passear em meu carrão novo.
III
Duas horas da madrugada. Depois de uma farta e pouco digesta refeição estou circulando pelas boates em busca de alguma emoção entre cafetões, prostitutas, raiva, ódio, alegria, frivolidade, prazer, doenças venéreas e uma ou outra gravidez. Diante da vida sou pequeno demais, mas, se porventura tivesse o tamanho do universo, certamente ninguém enxergaria. Paro no sinal e uma criatura de um metro e setenta, 50 quilos, cabelos negros e lisos, olhos também negros, pouca maquiagem e um perfume que lembrei ter sentido quatro quarteirões atrás põe a cabeça para dentro do carro.
-E aí, o que vai querer?
-Entre.
-Não sei se posso.
-Olha, o máximo que pode acontecer é eu te estripar e beber teu sangue, e, a essa hora da manhã, tanto faz se for aí fora ou aqui dentro do carro, além do mais, recém adquiri a máquina e não quero manchar o estofamento. Não de sangue. Vamos, por acaso eu tenho cara de quem faz mal às pessoas?
-Tem.
Junto com a resposta veio um sorriso, um belo sorriso, e ambos me atingiram como uma estaca.
-Vou cobrar um extra. Já é tarde e estou precisando de grana.
-Tudo bem. Anda gastando muito?-em uma breve avaliação constato que não usa drogas e goza de razoável saúde- Drogas?
-Não, cinema. Sou fanática por cinema, de qualquer tipo. Hoje tirei “Independence Day” na locadora e, antes do trabalho, fui assistir “Jackie Brown”.
-Ora, Quentin Tarantino é um dos meus cineastas preferidos.
-Ah, é? É o meu também. Ele é capaz de usar a linguagem cinematográfica para produzir uma brutal reflexão sobre a temporalidade, através de cenas que saltam pelo eixo sintagmático e acabam por constituir-se em vários eixos paradigmáticos.
-Além de trazer elementos intertextuais, como cenas de outros filmes ou a própria trilha sonora. Uma história de Tarantino é constituída por muitas outras, e detalhes sutis as unem.
-O exemplo mais claro é o roteiro do filme “Um Drink no Inferno”. A trama, até então igual aos outros filmes, com armas e homens de preto, transforma-se em um festival de terror. É a melhor história sobre vampiros que já vi ser filmada.
O papo estava tão bom...droga, acho que ela notou que não gostei.
-Desculpe...
-Tudo bem. É que você é o primeiro cliente com quem eu falo sobre cinema e acabei ficando empolgada.
-Podemos continuar o papo depois.
-Espere um minuto, preciso arrumar algumas coisas.
Começa a vasculhar em sua imensa bolsa, da qual retira maquiagem, preservativos, perfume e Kleenex, que espalha no banco traseiro.
-É para não sujar o estofamento.
Eu não recordo se já sorri alguma vez, eu digo um sorriso verdadeiro, e agora descubro músculos faciais que eu pensava não existirem.
-Finalmente um sorriso. O que há? Não gosta de mostrar os dentes?
-Às vezes...
-Fique à vontade-começou a tirar a roupa.
Lembrei, então, que sou um cadáver tão frio que ela vai sair correndo no primeiro beijo. Preciso esquentar o corpo, e para isso aprendi uma técnica Zen: fico olhando para seu pescoço até todos os meus sentidos estarem voltados para suas artérias. Em poucos segundos entro em equilíbrio térmico com o líquido vermelho e vital que circula rapidamente
pelo seu belo corpo. É assim que zumbis ficam excitados. Pulei em cima dela e fomos para nosso leito de Kleenex. Faço movimentos rápidos. Ela morde meu pescoço de leve e olha fundo em meus olhos. Há algo errado. Começo a sentir uma energia estranha, algo queimando dentro de mim, mas não provoca dor. Estou indo cada vez mais rápido. Fecho os olhos e começo a delirar, vejo o sol nascendo dentro do peito. Volto a olhar nos olhos. Ali o sol está mais forte. Ela geme e grita. O orgasmo é intenso e mútuo, e ambos caímos, exaustos. Não sinto cansaço há muito tempo. Meus dentes começam a crescer e os músculos contraem. Não! Vou para fora do carro.
-O que houve?
-Nada, só não chegue perto agora, por favor...ei! -sinto um par de dentes enormes no meu pescoço. Giro o corpo e a jogo contra o carro. Paramos para ficar nos olhando sofregamente: os olhos de gato, as imensas mandíbulas...começamos a rir, e, ao mesmo tempo, chorar.
- Sei lá, eu achava que estava sozinho, ou poderíamos nos reconhecer de alguma forma.
-Eu acho que nós dois vemos filmes demais, aliás, que gosto estranho!
-É comida chinesa em fast food.
Tive uma imensa vontade de beijá-la, e beijei como nunca havia feito antes. Algumas coisas não mudam, na vida ou na morte, e agora posso entender o sol que nasce dentro de mim, pois ele substitui o verdadeiro sol, tanto para os vivos quanto para os mortos.
-Está tarde, preciso ir.
-Você volta?
-Sim. Que tal um cineminha e depois “jantar fora”?
-É claro.
Mais um beijo e um grande abraço, e saio voando, eu nem havia pensado em voar, mas já estava no céu, vislumbrando minha bela cidade em seu breve silêncio antes do amanhecer. Decido mergulhar nas escuras águas do Guaíba, e lá adormecer. Na superfície, aparelhos de barbear são ligados, dentes são escovados e crianças sonolentas tomam seu leite com chocolate. Coisas que, para mim, são apenas lendas distantes.