segunda-feira, 22 de março de 2021

Memorial do Antropóide Fábio Dal Molin Segundo Ele Próprio e suas Circunstâncias



                                             




 Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Instituto de Psicologia

Departamento de Psicologia Social e Institucional

Porto Alegre, Outubro de 1999


Memorial de um Antropóide

"Trata-se  de uma exposição de até oito páginas, contendo análise das experiências profissionais e apresentando as razões  de escolha do Programa e da linha de pesquisa, bem como a descrição dos interesses teóricos"


Ontem fui colher uma orquídea para a lapela, uma flor maravilhosa, sarapintada de manchas, estonteante como os sete pecados mortais. Perguntei o nome da flor a um dos jardineiros.  Ele informou que era um belo espécime de Robinsoniana, ou coisa assim. É uma triste verdade, mas perdemos a capacidade de dar belos nomes às coisas. O nome é tudo. Eu nunca critico os fatos. Limito-me a criticar as palavras. Eis porque detesto o realismo vulgar na literatura. O indivíduo que chama "pá" deveria ser condendado a manejá-la. Só serve para isso...thanks a lot, your marvelous cinic Sir Henry Wotton (personagem de O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde) agora posso começar meu texto.

15 de julho de 1975. Já procurei, não é dia de nada. Ah, lembrei! De São Vito. É claro, pois para cada dia do ano há, pelo menos, um Santo, Aliás, sempre há algum dia para alguma coisa ou para alguém. Os aniversários e os feriados foram feitos para isso! Todos nós temos o nosso dia para alguma coisa.! Alguns dias são comuns a todos, como o Natal e o Ano Novo, ou a final de uma Copa do Mundo, ou um Holocausto Nuclear, mas todos têm o seu dia, que sempre será o mesmo dia que alguém (afinal, pessoas nascem todos os dias). Uma história  que me foi contada por um disco de vinil vermelho  que, do outro lado, tinha gravado O Gato de Botas: Alice no País das Maravilhas. Alice encontra o Chapeleiro Louco e a Lebre Maluca, comemorando um desaniversário, sim, é a mesma lógica dos solstícios: após o dia mais longo do ano, os dias começam e encurtar até os equinócios, e assim vão diminuindo, até o solstício de do inverno, o dia mais curto do ano e os dias começam a aumentar... As estações  são mestiças, o ápice do inverno  já é o início do verão.  Isso, é claro, para um clima "ideal", pois o ângulo do sol é diferente nas diversas partes do planeta e os micro-relevos são capazes de produzir uma infinidade de estações, e os solstícios e equinócios misturam-se como as tintas de uma palheta. Na psicodélica alegoria de Lewis Carrol, uma vez por ano, éo dia do aniver´sario, e os outros 364 dias (ou 363) são os dias do desaniversário. Não há dia mais importante que outro. Pois é, neste dia, às 14 hroas e 45 minutos, em Porto Alegre, RS, mais precisamente no Hospital Conceição, nasceu uma criança que foi registrada e batizada como Fábio Dal Molin, filho 12 anos mais ovo de um total de cinco, o único nascido na capital, e que agora está escrevendo sobre isso.

 Será?  Prefiro iniciar não reconhecendo a autoria deste memorial, já que o considero um relato de encontros. E encontros são encontros, e não simplesmente a comunicação entre duas partes. As circunstâncias urgem  para chamar  a esse texto "memorial",  e já digo que memórias ( e não haverá citação obrigatória de nenhum autor aqui, pois esse texto é arrogantemente livre) são implicadas em "acontecimentos', e acontecimentos só existem se acontecerem para alguém. Sobre a verdade, eu a amo tanto que procuro preservá-la, reconhecendo sua inexistência.

Tenho verdadeiro pavor ao estatuto da autoria, ele é um sistema de exploração e mercado muito perverso. Quem não se lembra do Dr. Silvana,  o grande inimigo do Capitão Marvel, que certa vez tentou privatizar o alfabeto? E quem não sabe que hoje certas indústrias farmacêuticas colhem plantas curativas e conversam com xamãs na floresta amazônica, para depois registrar e adquirir exclusividade sobre o uso de ervas medicinais que podem erradicar várias doenças? Mesmo exposto a todo tipo de pirataria e plágio, reconheço que seria impossível provar minha culpa em escrever este memorial, pelo simples fato de ele ser produto de constantes revisões e alterações, que só pararam na hora de mandar imprimir. Sem falar que, para dizer  que "essas palavras são minhas", eu realmente deveria pagar "róialtis" ao dono do alfabeto, ou à Academia Brasileira de Letras. O autor deste texto já morreu, ou nem sequer, pois foi forjado de uma imaterial inquietude resultante do funcionamento incomum de um conjunto incomum de células  corticais,  e nada mais. Reconheço já o plágio de Memórias Póstumas de Brás Cubas, do inimitável Machado de Assis, ( por sinal o  legítimo dono da ABL), e ainda  trago a questão do desaniversário, pois tal romance ficou famoso sendo narrado por um morto, que, do seu caixão, começa, pela primeira vez, a pensar sobre sua vida.

Voltando a Oscar Wilde, o retrato pintado do apolíneo Dorian Gray não só envelhecia enquanto este permanecia jovem, mas também revelava as terríveis vicissitudes do seu caráter. Dorian trancou a pintura a sete chaves, e ao seu lado colocou um espelho. Após a primeira modificação, um misto de horror e curiosidade acometeu-lhe ao perceber que sua própria imagem  parecia defasada em relação ao quadro, e que este refletia genuinamente seu momento e sua alma. O grande tormento do escritor é que os frutos que colhe da árvore de seus próprios pensamentos apodreçam em breves instantes, e a palavra escrita e impressa,  em sua ilusão de registro e imobilidade, é, paradoxalmente, o que há de mais efêmero. Ano passado, quando prestei um fracassado exame para o mestrado (que rima macabra, como esta cacofonia) redigi  esse tal de memorial um pouco às pressas, e saiu um texto que até parecia bonzinho, mas quando o encontrei quase um ano depois, li outro Fábio contando uma outra história difícil de  acreditar. Tranquei-o a sete chaves em algum diretório. Eis um sério indício de que todo o texto, e a própria palavra contada/contida nele, é uma ficção, uma grande ilusão, perfeitamente moldável pelas circunstâncias, pelo andar da carruagem cósmica que é o girar do mundo e toda matéria e energia nele existente. Essa tal de "trajetória intelectual e profissional" no  texto anterior, ficou explicativa demais, uma ficção pouco palpável,  " ah, sempre questionei muito o que aprendi na universidade, etc, ou "meu interesse pela psicanálise (ou Jung ou Fenomenologia, ou pela polítuca, ou Psicologia Social, ou Teatro) foi por causa de tal autor ou tal professor, etc." Essa causalidade é um tanto enfadonha,  e, de fato, ela só nasceu no momento  de escrever o texto, antes não existia, e os fatos da vida flutuavam livres pelo éter." O signo é uma mentira", diz Umberto Eco. E a vida é contada pelos signos! E podemos explicar  os signos como as "janelas" do computador, ícones selecionados via mouse que levam a bancos de dados que levam a novas janelas e novos dados.

 Nossa contemporaneidade ainda muito greco-romana obriga-nos a eleger grandes heróis e grandes tragédias, profecias terrivelmente realizáveis e alguma lição a se tirar disso tudo, os bons e os maus

Duas historinhas zen-budistas:

-Mestre, estou sendo esmagado pelo meu ego. O mestre respondeu: Muito bem, então mostre-me seu ego

A outra é uma lição:

Quando estiver meditando, se o demônio aparecer, dê-lhe três chibatadas, se Buda aparecer, também dê-lhe três chibatadas. Tudo é ilusão. Pense no aqui e no agora.

O aqui e o agora. Não há momento mais importante, nem no passado nem no futuro. Lewis Carrol retorna à discussão: não há dia mais importante que os outros. Os dias são mestiços.

 A possibilidade das escolhas

Sobre as atividades que realizei no curso de psicologia, meu curriculum as explicita muito bem, e talvez eu acrescente duas disciplinas de Introdução ao pensamento junguiano. No entanto, estou mais preocupado aqui em m em captar as intensidades do que circula pelo meu "mundo vivido" e "trajetar" uma trajetória. fiz quatro vezes a  a disciplina de Estatística Básica I, por sinal, minha última atividade como graduando. Aprendi com um professor "muito maluco" e genial que a probabilidade não existe, é pura invenção. Ele sempre pregava uma peça nos alunos: no clássico exemplo de probabilidade de uma moeda jogada dar cara ou coroa, lembrava-nos de nunca descartar a possibilidade  de um albatroz  entrar voando pela sala  e roubar a moeda! As probabilidades  são especulações matemáticas baseadas em estados de coisas ( o número de faces da moeda) ou eventos preexistentes (os experimentos), criadas por nós, que somos antropóides metidos a matemáticos. Na verdade, as coisas simplesmente podem acontecer ou não. O que quero dizer é que relatar minhas experiências "passadas", considerando a linearidade do que é "passado" determina o "futuro" é um método falho de investigar o que é o presente, e o presente é simplesmente um "entre fatos". Eu simplesmente gostaria muito de alimentar estas páginas com notícias limpas e frescas, encontrar fatos trazidos à tona pela reflexão presente, forças que sinto vivas ainda hoje e que sempre estão voltando, angustiadas para dar sentido à realidade.

                                             O encontro com o mundo

Um de nossos hábitos cotidianos é afirmar "hoje em dia, a Televisão domina o mundo, aliena as pessoas", ou qualquer coisa assim. ora, "hoje em dia" dá uma idéia  de que a pré-existência, de que se viveu algum dia sem TV; para alguém de 24 anos isso é uma piada sem graça...

Em uma interface temporal avanço e retrocedo milhares de anos e constato que o mundo onde e nasci e vivi é um mundo  que pertence à televisão e ao dinheiro. O livro sagrado da minha geração é o programa Vídeo Show. Assim é  assim foi o mundo: a janela que a televisão mantinha constantemente aberta para acontecimentos de outras épocas e lugares, muitas vezes ao vivo. O Vídeo Show é um festival de memórias, onde observamos que o tempo passou rápido, e as imagens que nos faziam alucinar nos anos 70 e 80 hoje parecem esmaecidas e ultrapassadas, o som abafado, os atores de hoje envelhecidos. Estamos na era dos "cyborgs", que não são meramente dotados de próteses como o saudoso Steve Austin em "O homem de seis milhões de dólares", ou "Robocop", mas seres que utilizam máquinas como extensão de sua subjetividades. Também não há como negar que a linguagem também é uma máquina, um instrumento de organização do pensamento e comunicação. É imporssível determinar a "veracidade" de qualquer coisa ou qualquer fato, pois eles sempre chegam a nossa percepção da forma de outras percepções. Desde que aquele macaco do filme "2001-A Space Oddissey" teve a genial ideia de transformar o fêmur de outro animal em um potente instrumento de destruiçãi, as "máquinas", sejam elas palavras ou supercomputadores, ou o conceito de humanidade, fazem parte de todos nós.

                                A escolha da linha de pesquisa


Três foram as vezes que assisti "Matrix", um filme que muitas pessoas, das mais variadas ideologias. concordaram ser uma constrangedora expressão do mundo  em que vivemos. Sim, quando nascemos, recebemos o mundo de presente dele próprio, aprendemos a contar os segundos, as horas os meses, organizar acontecimentos e histórias contadas. Para algumas pessoas, como Fábio Dal Molin, por exemplo, tudo parecia muito natural no início. A Internet, para a minha geração, chegou a surpreender por alguns momentos, e está sendo incorporada e explorada, graças a sua constante transformação. A TV faz parte  de minhas memórias mais longínquas, como o fogão ou o chuveiro, e nunca houve, como há no computador, a possibilidade de responder, de dizer "não" ou sequer "sim". Hoje posso facilmente construir um sítio virtual, divulgá-lo  bem, e entrar em fóruns de discussão em qualquer parte do mundo. A televisão é um veículo  de comunicação no qual "um grande transmite a mesma informação para muitos a longas distâncias imediatamente". A primeira transmissão via satélite da história, no fim dos anos 60, foi a canção "All you need is love" dos Beatles:

 There's nothing you can do that can't be done

Nothing you can sing that can't be song

Sempre amei os Beatles. Agora, na internet, na forma de comunicação "de muitos para muitos' posso acessar milhares de sítios virtuais  sobre a banda, ouvir música, obter informações, fotos, letras, videoclips, conversar com outros fãs (ou, por que não , com Paul McCartney?) e elaborar meu proprio sítio virtual sobre o que eu mais gosto dos quatro rapazes de Liverpool. O que interessa, na verdade, é que a televisão capta uma realidade que ela própria escolhe e modifia, ampliando o que mais lhe interessa e extinguindo o resto, e esta realidade é apresentada como se fosse "a realidade" aos telespectadores. Na Internet também ocorre isso, mas a capacidade de escolha do internauta, bem como  a quantidade de informações disponíveis, é infinitamente superior, e a "realidade" apresentada pode muito bem ser modificada. Tudo é ilusão.  Este é um dos princípios do filme Matrixm e de novo o zen-budismo: se tudo é ilusão, tudo é transformável, nada  é absoluto, uma ética, o conhecimento sobre o conhecimento. O aqui e o agora. A meditaçãio  zen é um princípio interessante: tentar não pensar,  e mesmo  não pensar seria pensar, é preciso deixar os pensamentos fluirem, as sensações desaparecerem e a verdadeira luz aparecer e mostrar a realidade, até perceber que não há diferença entre o eu e o Universo. A arte do arqueiro zen é tornar-se ele mesmo flecha e alvo.

Agora sinto-me à vontade para falar da minha linha de pesquisa.

                         Vamos então ao objetivo deste memoríal

A mecânica dos fluídos nos ensinou muito bem o que é o vácuo. O vácuo é, em última instância, um possibilitador do movimento. Pensemos classicamente: o ar desloca-se por diferença de pressão, a saber, das áreas de maior pressão para as de menor pressão (este é o fenômeno característico dos ventos, por exemplo). O vácuo, por ser o vazio, é o ambiente de menor pressão, então ele é capaz de fzer com que o ar e os objetos que estejam imersos nele se desloquem até ele. Não lembro se foi Arquimedes ou Aristóteles quem disse "a natureza odeia o vácuo". Há outros exemplos analógicos na natureza ( como o salto quântico do elétron ou a diferença de potencial  geradora de eletricidade), mas pensemos que a atmosfera da Terra está sempre em movimento por sempre haver diferenças de pressão  entre as massas de ar, gerando "vácuos relativos". A circulação do sangue pelo corpo obedece a um mecanismo da mesma natureza. O que interessa aqui é "o vazio que provoca o movimento, o encontro e a mistura".

Nos meus cinco anos do curso de Psicologia da UFRGS, passei, como todos os alunos passam, pela enxurrada de informações sobre teorias e correntes de pensamento, e por uma coação quase que terrorista de que deveria optar por uma e estudá-la até o dia de minha morte, ou então todos torceriam o nariz e eu estaria fazendo uma "salada de frutas" teórica. Ora, eu adoro salada de frutas, e aprendi que, quanto mais variada for a  alimentação, melhor para o organismo, e cada fruta complementa os nutrientes da outra, bem como o sabor. Foi através da participação dos EREPs que pude "sair da Matrix" universitária e ter contato com o que se estuda em outras universidades e em outros estados ( e até me outros países) Pude, saindo da UFRGS e adentrando o EREP, que é um espaço de múltiplos encontros, olhar lá para o Rio Grande do Sul e para Porto Alegre, e refletir se o que eu aprendia era realmente a Psicologia, entendida como o estudo do ser humano, seja lá ele quem for, ou era uma maldita coletânea de pesquisadores famosos que estudavam ângulos diferentes do mesmo objeto e brigavam politicamente entre si. Um aprendizado decididamente anti-ético.

No momento de escolha do estágio em psicologia escolar, eu decididamente ansiava por novas experiências, negava a possibilidade de que meu futuro como psicólogo seria ficar repetindo o que outros autores escreviam ou faziam. Na época que era bolsista  de iniciação científica do professor William Barbosa Gomes, e havia aprendido a ser um pesquisador, e mais, um fenomenólogo ( a fenomenologia, pura e simplesmente, é o estudo dos fenômenos e os fenômenos são tudo aquilo que acontece no mundo e é percebido pelo ser). No entanto, também havia feito duas cadeiras de Jung, uma espécie de psiquiatra-psicólogo-antropólogo, e, no decorrer das disciplinas da clínica, tinha contato com a psicanálise de Freud e Lacan. A pergunta era: o que é um estágio e que tipo de estágio poderia eu fazer.

 Surge, então a proposta do então setor e hoje Departamento de Psicologia Social e Institucional de realizar um estágio que integraria as áreas de Escolar e de Trabalho em  em apenas um local e com um período de um ano e meio. Mais tempo, possibilidade de integrar conhecimento e menos  trabalho de ir em busca de locais de estágio: eram estas as vantagens iniciais. Pois bem, estava marcada  uma reunião para os interessados e eu e meu colega Carlos Ribeiro, também sem estágio, comparecemos. Ali conhecemos Regina, diretora da Escola Estadual José do Patrocínio, na Restinga, que chegava, esbaforida, dizendo que a escola estava aberta a novas experiências, e que lá não havia psicólogo e muito menos estagiários. Um campo inexplorado de trabalho!!!

 Após uma longa viagem de ônibus ( que hoje parece um pouco menos longa) eu e Carlos chegamos na Escola. Era recreio, em pleno  e mormacento mês de abril, e milhares de crianças pulavam, brincavam , riam jogavam e brigavam. Uma escola com 1200 alunos em uma comunidade desconhecida por nós, e seríamos os primeiros estagiários de psicologia no local.

Nestes primeiros dias de Restinga e de escola, eu olhava para as professoras, as crianças, os banheiros, os prédios de madeira apodrecida em volta de um imenso  prédio construído mais recentemente e que chamávamos de nave-mãe, para o sol que brilhava lá fora e a rua de chão batido, para o bar do tio Neri, uma espécie de brique de artigos roubados que ficava em frente à escola, e tentava pensar. Só estou conseguindo agora descrever o que imaginei três anos atrás: a fisiologia, a estatística, a psicologia experimental, a fenomenologia,  a psicanálise, a semiótica, a epistemologia, Jung, as teorias sobre grupos e instituições, tudo parecia querer sair e entrar desesperadamente da minha cabeça, e ora fugir, ora ir ao encontro daquele mundo novo que surgia a cada local visitado e a cada pessoa com quem eu conversava. Ali, muito pouco valiam os códigos da academia, e os estagiários eram pessoas que vinham resolver os problemas, ou pessoas que não serviam para nada. Era preciso estabelecer um vácuo mental para que a realidade viesse ao meu encontro. Uma espécie de "momento zero" extremamente angustiante, mas que desencadeou uma mudança que fez com que eu sentisse o mesmo em quaisquer experiências desde então.

No início éramos  eu e o Carlos, e tínhamos supervisão uma vez por semana, nas quintas-feiras, com duas professoras que já encontráramos antes no curso, nas disciplinas de Trabalho e Escolar: Regina Sordi, sempre silenciosa e muito observadora, e Tania Galli Fonseca, que fumava um cigarro atrás do outro. Acredito que elas também estavam em um "momento zero" como supervisoras, e compreenderam perfeitamente tudo o que sentíamos, e, creio eu de novo, puseram de lado sua postura de "mestras" para nos ajudar em cooperação naquele  novo campo de estudo.

Muitas pessoas agregaram-se a nós e à proposta, e posso dizer, com certo orgulho, que tive uma oportunidade ímpar de construir, em cooperação, minha própria prática em psicologia, e isso teve continuidade no estágio da clínica. Pude, a partir, de todas as leituras que havia feito de diversas correntes e áreas do saber, desenvolver uma psicologia mais dinâmica, que tirasse um pouco o pé do freio e estivesse aberta sempre ao espírito criativo e à curiosidade. Esta curiosidade guia minha vida hoje, e ajudou a romper as barreiras do preconceito com a tecnologia e começar a explorar a internet, na verdade uma tecnologia não muito diferente da empregada no estágio, pois ambas  remetem ao conceito de rede, que é o tema do meu pré-projeto de dissertação. Tudo muda e tudo mudou, o mundo, as pessoas a própria forma de observar a ciência de forma mais complexa e interdisciplinar. Gostaria agora de citar algumas pessoas que fazem parte da minha trajetória, e que sua ausência tornaria esse memorial incompleto:

Akiles Cronópio, Carlos Ribeiro ( Sr Spock em constante luta com seu lado humano) Fábio Born Vieira ( o império dos Fábios se aproxima), Mateus Mapa ( do qual sou o Igor do "Frankestein" Relógios de Frederico), Juliana Dornelles (minha querida Smurfette), Heloisa Helena Marcon (o stress necessário) Michele Coelho (pena que mora longe) Fabiana Tomazzoni ( o stress necessário, parte 2) Deise Juliana Francisco (pena que mora longe, parte 2), Peter Pal_Pelbart ( apesar de ser meio canastrão), Suely Rolnick (ô mulherão), Manoel Mayer Jr ( que me ensinou muito sobre o movimento estudantil)

Gustaria de agradecer aos artistas que participaram deste memorial : Oscar Wilde, Machado de Assis, aos criadores de Matrix, John Lennon, Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr, além de Charles Bukowski, pois, sem ele, eu jamais escreveria nada. Também agradeço a Arquimedes ( ou Aristóteles) e ao Iluminado Sidarta Gautama.

 É isso aí


quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Luz Negra

Luz Negra
Vácuo, lugar de deslocamento, cuja ausência significa presença de algo, um espaço que pode medir infinitos bilhões de quilômetros, e que também é imensuravelmente pequeno como o diâmetro de um neutrino, aquilo que está contido e contém o Universo. Trilhões de trilhões de moléculas de Hidrogênio e Hélio por entre a escuridão mais absoluta, interagindo pelo processo de transmissão de energia denominado irradiação ou pela misteriosa atração gravitacional, aprisionada em uma máscara de belos e poéticos cálculos matemáticos, que já povoaram os pesadelos de muitos estudantes. Aliás, nenhum estudante, ou melhor nenhum ser humano, ou melhor, nada, nem merda, nem cheeseburgers são capazes de sobreviver inteiramente nus a qualquer ambiente fora da atmosfera do tão maltratado planeta Terra. Menos eu. Estou agora viajando a uma velocidade imensurável do hiperespaço. Nosso Universo possui distâncias temporais e espaciais que podem ser relativas. Para os tripulantes de uma nave viajando à velocidade da luz, uma longa viagem interestelar pode ser feita em meia-hora, para o piloto da nave, enquanto na Terra os controladores de vôo já envelheceram e morreram. O Hiperespaço é uma espécie de atalho, como se uma ponta do universo pudesse ser dobrada como uma folha de papel ou um tecido, o espaço e o tempo desaparecem. Há naves que são capazes de cruzar a Via Láctea em menos de meia hora, e é interessante observar, em um holomapa, o formato de “costura” da trajetória..
Além das naves, alguns seres vivos também podem alcançar “velocidade de dobra”. Aliás, preciso me apresentar: sou Draktapillar, cidadão integrante do Planeta - Entidade Drakta. Minhas habilidades hiperespaciais são-me ensinadas porque assim é preciso para executar minha função. Sou um interceptador. Há muitos iguais a mim em meu planeta, todos extremamente eficientes. O termo “Interceptador” é bastante antigo, atualmente é apenas um apelido de certa forma carinhoso. Durante incalculáveis anos galácticos a via-láctea era, para mim, surda e muda, e agora, em um milésimo de instante de transformações entre matéria e energia , após virar a curva em Saturno e cruzar um cinturão de asteróides eu despenco pela atmosfera áspera do planeta azul.
Espelho. Eu sei o que é um espelho? Devo saber... é para um espelho que eu olho agora e vejo uma imagem.Um par de olhos azuis, uma camisa azul de ceda e uma calça jeans. A imagem não é clara, está escuro, e aos poucos começo a perceber uma miscelânea de sons: ruídos, gritos, gargalhadas, vozes, gemidos e a cadência tonitroante da batida de algum tipo de ritmo africano.. Novamente me pergunto como posso saber tudo isso?Preciso me concentrar... quem eu sou? O que eu sou?Tenho minhas hipóteses.. Rápido demais. Eu atravessei o sistema da estrela amarela quase à velocidade da luz. Tornar-se pura energia, este é o risco que os interceptadores correm. Minha existência se converteu em ondas eletromagnéticas e elas encontraram, ressonância e anteparo em algo, ou alguém. Um habitante do terceiro planeta, sim, a luz que o espelho reflete é de um habitante da Terra. Minhas idéias começam aos poucos a desacelerar e a captar seus pensamentos e memórias, ou a se misturarem com eles.Humano, começo a pensar que sou humano.. assim são os habitantes deste planeta, ou pelo menos os que conseguem decodificar os pensamentos e integrá-los em algo semelhante ao “Eu”. È assim que este eu pensa.. mas é engraçado que para este ser humano a ideia de humano é difusa, complexa. Vasculho sua mente e encontro intrincadas redes de pensamentos, formando nebulosas, algumas posso vislumbrar códigos “filosofia” subcódigos “existencialismo”, “subjetividade”, “mente” “sistemas”. Este ser humano parece ter adquirido habilidades de pensamento em algum tipo de escola.Tento estreitar o vínculo. Para isso preciso esquecer um pouco quem eu sou, dissolver meu eu nos pensamentos do outro....


Recém-formado e endividado em pleno mês de março.. Tudo o que eu consigo fazer é fumar, beber e escrever. Nos últimos meses, ainda que conseguisse algumas boas trepadas, minhas relações com as mulheres andavam um pouco conturbadas. Começava a pensar que era melhor assim, Na verdade mesmo o sexo já não tinha tanta importância para mim, e o que sinto agora é um tipo de entorpecimento, como se meu corpo estivesse dissociado de minha mente, quase com em uma anestesia raquidiana, olhava a tudo na minha volta e nada daquilo provocava nenhuma sensação, pelo menos uma sensação adequada, uma ereção, um batimento cardíaco acelerado, nada...Estou em um lugar em que as pessoas estão em volta de mim fazendo sexo, gemendo, resfolegando, dançando. È uma casa de swing, está tudo escuro, apenas as calcinhas e sutiãs, cuecas, robes, camisas dos poucos corpos vestidos emitem uma freqüência luminosa intensa proporcionada pela luz negra. Por todo lado há mesas, sofás, almofadas, preservativos fluorescentes, pênis e vaginas. O lugar é labiríntico, caminho pelo salão maior e adentro as antecâmaras, onde há enormes camas cheias de corpos balançantes. Junto comigo um bando de velhos depravados andam de um lado para outro e tentam levantar seus pintos flácidos.
Estou um pouco entendiado e nauseado. Lembrei de um sonho que eu tive, no qual a lua explodia como uma ogiva nuclear. Peguei uma cerveja sentei e fiquei imaginando a radioatividade lunar e a luz negra refletindo na calcinha branca de uma mulher negra alta e esguia, e da cabeça de meu amigo Bernardo Carpegiani que levantava e descia do meio daquelas pernas. Bernardo gosta de chupar boceta, e neste momento ele está na mais pura imersão vaginal. Ao meu lado está um velho punheteiro, que grita, indignado:
- Ih, já começou a chupação.
Eu olhava para aquele esqueleto vivo, um sobrevivente de guerras urbanas ressentido e decadente, e pensava em Spinoza, nos bons e maus encontros, no veneno diminuidor de potência, nas paixões tristes e alegres.Spinoza era considerado herege pelos católicos e ateu pelos judeus(ou seria ao contrário?) e tentou convencer as cabeças recém saídas da idade média que todo o universo refletia a luz divina: o belo, o feio, a merda e o perfume, os assassinos depravados e as velhas virgens.. Morreu pobre, doente, amaldiçoado, seus amigos o traíram e hoje é um dos filósofos mais conhecidos e respeitados no mundo. Quando eu e Bernardo chegamos, ele foi passar o cartão na entrada (sim, o lugar é cobrado como um Buffet,pago adiantado) e a balconista perguntou:
-Vai pagar para ti e para o teu amigo com cara de assustado
Ela precisava dizer uma coisa dessas? Eu, que estava quase em pânico, sentia meu pau encolher de tamanho na inversa proporção em que meu coração acelerava, decréscimos de potência, dizia o velho Spina
Então, sou um filósofo devasso para a academia e um putanheiro amador e ingênuo vagando por aquela imensa suruba. Olhei para o velho se masturbando. Vale a pena?
Enquanto isso, Bernardo trepava em pé com a deusa de ébano, enquanto ela gritava:
-Goza, me dá teu leite
Tive um deja-vu e pensei em uma via-láctea e em espermatozóides singrando o vácuo sideral como cometas, e no grande cú invertido que parece ser um buraco negro, enquanto meu amigo dava seu derradeiro urro de prazer, desfalecendo no sofá, para logo em seguida acender um cigarro. Um sujeito barbudo e peludo com cara de funcionário público chama a deusa negra e, com um sorriso babão, bate no peito, como se dissesse “é minha vez”. Ela finge ignorar e olha para mim de maneira inquisidora. Noto que ela está com a calcinha enrolada no pulso, brilhando intensamente com a luz negra. Ela se vira na minha direção. Pelos Diabos!!!! È uma pantera negra, a foda dos meus sonhos adolescentes, quando eu imaginava voar, ser superforte, imortal e ser capaz de persuadir todas as mulheres a fazer sexo furioso comigo, inclusive as que habitavam as revistas.
Ela pergunta:
-E tu aí, já transou?
-Sim, já transei.
È verdade, eu já havia transado.. Logo que eu e Bernardo havíamos chegado a casa estava vazia, e as mulheres estavam todas em grupos, sentadas nas mesas.Lembrei do telefonema que recebi algumas horas antes quando já estava em casa de banho tomado, pronto para ler um pouco de Nietzsche e dormir. Era domingo. O telefone tocou, era Bernardo Carpegiani, Bernardo é daqueles tipos que parece ter um reator nuclear no cérebro, sua voz parece a do Axl Rose e é tão viciado em sexo e Adrenalina que a abstinência lhe provoca dor na cabeça e até nas bolas. Pelo jeito estava com as duas.
-E aí, Henri, o que tá fazendo..
-To deitado, lendo Nietzsche
-Maaaasssaaa, e aí, quero te convidar para ir a um lugar
-Onde?
-No Divan’s
-Sério?-Bernardo já tinha me falado de suas aventuras e feito uma tremenda propaganda do lugar. Minha mente masculina primata e adolescente ficou excitada, imaginando uma noite luxuriosa de sexo interminável e sessões de kama sutra. No mundo real senti o estômago gelar, além do mais, realmente o sexo não era uma grande preocupação da minha vida, e descobri a desculpa perfeita.
-Sério, vamos lá, é a noite dos solteiros, hoje vai pouca gente vamos tocar o terror...
-Véio, eu to duro-putz, metáfora péssima- pelado - pior ainda -sem grana, não sei se vou ganhar a bolsa de mestrado. Na real era verdade, mas não era só isso. Eu não estava interessado em sexo. Eu vivia o pior momento de minha vida financeira e profissional, recém formado em Filosofia e esperando pela bolsa de mestrado, mas minha vida sexual nunca tinha sido tão intensa. È claro que este raciocínio é linear, afinal, no sexo a tragédia e a comédia superam qualquer lógica imaginável.
-Ah, pára com isso, seu cagão, eu pago co cartão de crédito e tu me devolve quando a bolsa chegar...
Era o que eu temia.Bernardo pegou um taxi e lá fomos nós para a casa da luz vermelha, ou melhor, da luz negra.
Estávamos sentados em uma mesa com três ou quatro mulheres, e todas davam risada do fato de Bernardo gostar de sexo oral. Eu estava quieto, lacônico, eu não sei jogar conversa fora ou falar de putaria, e minha impressão ninguém na mesa queria discutir o Inconsciente Estético de Jaques Ranciére ou os fluxos do tempo deleuzianos em comentários da obra de Marcel Proust. Aos poucos as pessoas começavam a chegar, na mesma proporção que volume da música aumentava.
Este lugar sequer me inspirava a devassidão carnal e visceral da obra do Marquês de Sade, afinal, era apenas pessoas fazendo sexo por dinheiro, não havia poesia, nem indecência nem dominação. O lugar era administrado por um velho ranzinza que ficava o tempo todo mandando as mulheres trabalhar, como um vaqueiro enxotando um rebanho. Percebi que uma loira baixinha sentou ao meu lado e começou a puxar papo, encostou as pernas em mim e pegou na minha mão. Assim como a balconista, ela sentiu o cheiro do meu medo, que deve ter a mesma flagrância dos otários. Bernardo falava por mim e por ele. Uma hora ele perguntou se ela gozava quando estava trabalhando lá. Ela disse que nunca, nunca jamais havia tido um orgasmo trabalhando. Pensei em um antigo cartum do Angeli, “Paulista também trepa”, era o nome. O desenho era uma linha de montagem de pessoas fazendo sexo, como frangos sendo depenados e decapitados em enormes frigoríficos. É uma noite perfeita, vou transar com uma mulher que já descartou o orgasmo por antecedência. No salão maior da casa havia um pequeno palco. Ouvi o velho vaqueiro falar no microfone como uma espécie de mestre de cerimônias.
-Está na hora da dança da cadeira.
Pelo que o Bernardo me falou, é uma brincadeira erótica, feita para descontrair. Penso em Freud e no “Mal estar na civilização”:as pessoas pagam para entrar em um ambiente de sexo livre e ilimitado, onde há mulheres pagas especialmente para isso e maridos se prestam a levar as esposas para vê-las transar com um desconhecido, e é necessário uma dança das cadeiras infantil para todos se liberarem e perderem a vergonha. Penso em ir vomitar no banheiro. Quando a dança começa, a minha acompanhante pega minha mão e me arrasta para outra sala.
-Vamos lá na suíte virtual
Entramos em um cubículo onde havia um colchão com almofadas e paredes forradas de papel alumínio, e imensas lâmpadas apontavam para nós, amplificadas pelas paredes refratárias. A suíte virtual era uma novidade do Divan’s, possuía uma câmera que filmava e fotografava e transmitia ao vivo pela internet. As paredes de alumínio serviam para otimizar a luz e melhorar a qualidade das imagens. Aquilo parecia um maldito microondas. Ali estava eu, nu, cozinhando no calor dos infernos e me degladiando com uma puta frígida enquanto punheteiros insones escreviam gracinhas em uma sala de chat.No fim do combate (sim, aquilo pareceu uma luta-livre telecats: ninguém bateu e ninguém apanhou) Ela perguntou se eu tinha um “brilho”, eu respondi “quê?”. Depois de uns 15 minutos o velho vaqueiro inútil começou a gritar para liberarmos a suíte. Vesti minhas roupas rapidamente e atravessei um corredor cheio de homens peludos de toalha ou roupão, pensando em como somos ridículos e gastamos nestes lugares um tempo precioso, no qual poderíamos tornar o mundo melhor.
Agora eu respondo novamente a pergunta da deusa de ébano:
-Sim, já transei
Fui tomar outra cerveja, e comecei a andar de um lado para outro junto com os velhos punheteiros, enquanto Bernardo se preparava para mais uma de suas cinco ou seis. Eu comecei a olhar fixamente para a luz negra...
Vácuo, retornei ao vácuo. Posso agora sentir a delicada vibração dos raios cósmicos enquanto atravesso camadas e camadas de radiação e calor intenso até mergulhar no centro do sol, onde podia observar os choques entre os átomos, os ventos solares, o calor intenso e brincar no repuxo da gravidade.E é desta energia que os seres vivos dependem.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Algumas Horas em um Bar Fumacento

O quê? Um grande homem? Não vejo nada além de um comediante do próprio ideal.
Nietzsche

Luzes. Pessoas dançam em um ritmo alucinado música underground. “Parece os bares londrinos” diz uma voz esnobe, cujos olhos esnobes estão a mais ou menos 70 cm de mim. Pode até parecer, mas, na verdade, é uma espelunca fumacenta em algum recanto obscuro de uma cidade obscura chamada Porto Alegre, que até já deve ter virado lugar-comum dizer que de Alegre não tem nada. Aqui estou eu, o protagonista desta história, diante de minha antagonista, pela qual, segundo o autor, estou apaixonado. Vamos dizer o seguinte: ela é rica, fala três idiomas, morou na Europa, freqüenta os melhores círculos culturais, estuda os melhores autores, é de uma família nobre e, decididamente, escolhe suas companhias ou, os poucos privilegiados que podem contar com sua majestosa presença a partir de critérios bem precisos. Além disso tudo, é casada com um ser da mesma espécie, ou, perdão, mora junto, pois o casamento é uma coisa tão burguesa... Eu? Minha maior experiência internacional foi ter ido ao Paraguai fazer contrabando, falo mal meu próprio idioma, sou fã da série de TV “Perdidos no Espaço” e Levi-Strauss para mim é marca de jeans. O que nós estamos fazendo no mesmo ambiente, conversando, bebendo, dançando, pergunte ao autor, que deve ser algum idiota de imaginação fértil e sem um mínimo de escrúpulos. Todo mundo sonha um dia em ser um personagem de ficção, um herói, ter superpoderes ou encontrar uma princesa na torre de um castelo esperando para ser salva. Imagine só ser parte de um clássico da literatura, bravo, intrépido, imortal. Pois é, caro leitor, sou um personagem da literatura, mas tive o azar de ser criado por um escritor desconhecido que escreve sobre a mediocridade da vida cotidiana.
Alguma coisa aconteceu entre nós. Eu, como já disse, estou apaixonado. Ela, ou está brincando comigo, ou é mais um estudo antropológico e transcultural, ou está apaixonada por mim mas o seu cérebro superior a impede de admitir, ou é mais uma coisa que as mulheres fazem sempre e ninguém sabe o que é e nem chega perto de entender. Como ela é? Quem já leu Machado de Assis deve saber o que são “olhos de ressaca”, cabelos negros cortados pouco abaixo das orelhas, lisos, no estilo Channel. Não basta apenas usar uma roupa, é preciso vestir-se bem, e é o que ela faz. Porra, não há como negar que é uma mulher de classe, do tipo que esmaga as pessoas quando apenas levanta as sobrancelhas. Esquecendo toda a retórica engraçadinha, ela é tão linda que eu esqueceria todas as mágoas e daria o Nobel de literatura para o sr. Akiles Cronópio por tê-la criado. Uma questão de estética.
Nesse exato momento, ela me diz coisas que o ruído da música e das milhares de pessoas quase me impede de ouvir, mas eu sei que não é sincero. Eu respondo sempre com sinceridade, pois, como estou apaixonado, sou um otário, um rato de laboratório, um indígena que viu um espelhinho vagabundo e trocou a vida de seu povo por isso. Eu penso “céus, por que eu não agarro ela, foda-se o resto”. Mas há uma barreira de reflexões, éticas, momentos, subjetividades que, para mim, é até transponível, mas, para ela, não. Pensando bem, eu acabaria afundando na profundidade da existência daquele ser tão denso e singular. Aliás, o leitor deve perguntar o que uma pessoa “casada” está fazendo a esta hora da noite em tão suspeita companhia? Ora, dizer homens otários parece ser uma redundância. Somos todos iguais, independente de cor, raça, credo ou opção filosófica. Até um personagem vagabundo de um conto mal escrito sabe disso.
Peço licença e vou ao banheiro. Minha cabeça está girando um pouco, o estômago está embrulhado e o coração está tapando os ouvidos. Lá se vão algumas cervejas e um resto de canelone esgoto abaixo. Vomitar é a coisa mais importante que uma pessoa pode fazer quando as coisas não vão bem. Agora meu estômago está limpo, posso pensar melhor, beber mais, engolir mentiras e idiotices com mais desenvoltura.
Saio do banheiro e, no meio do longo caminho de esbarrões e cotoveladas, enxergo um rosto estranhamente familiar. Não pode ser. Eu ainda não bebi e ouvi bobagens o suficiente para ter alucinações, mas é ele: Henry Charles Bukowski. Lá estavam aqueles olhos tristes, aquela cara amassada e trágica empinando um whisky em tempo recorde. Estamos em 1998, e Bukowski morreu em 1994, no entanto, eu não existo, nada existe, então isso não importa.
-H...Hank?
-Sente-se, garoto, e beba algo. Eu andei te observando. O que está acontecendo?
-Não sei...
-Claro, nós nunca sabemos nada, ainda mais fedelhos como você. Eu, na sua idade, já havia apanhado muito e era imbatível na bebida. Sem falar que nunca dei muita importância para as mulheres além do que elas realmente merecem. Depois de mais de mil trepadas, a maioria não muito boas, posso lhe dizer que o sexo é interessante mas não é totalmente importante. Quero dizer, não chega nem mesmo a ser tão importante (fisicamente) quanto a excreção. Um homem pode chegar aos 70 anos sem uma buceta, mas pode morrer numa semana sem um movimento dos intestinos.
-A tal da “postura gélida”? Eu li essa história.
-As mulheres são umas putas invencíveis, não vale a pena tentar subjugá-las, nós não nascemos para isso, ninguém nasceu. A postura gélida é uma maneira de ver o mundo, e de agir (ou não agir) em relação a tudo, inclusive às mulheres. As pessoas pisam nos nossos calos, tentam nos humilhar, superar, mas, porra, vamos todos morrer e acabar como um imenso bolo de merda dentro de uma privada somente esperando algum almofadinha puxar a descarga. Só o Homem Gélido sabe disso, e a vida segue para ele. Não sei se ser Gélido é a solução para alguém, talvez não seja para você, ou seja somente para os velhos fodidos e bebuns como eu.
-Um dos maiores escritores do nosso tempo, também?
-E isso importa? Agora não passo de um monte de ossos em algum cemitério vagabundo. Eu sempre tentei me esconder das coisas e das pessoas, e minha obra é isso também. Bata de cabeça na parede, garoto, mas levante depois. Você é jovem e puro demais para ser Gélido. Ei, veja só...
Neste exato momento aparece uma ruiva, ou melhor, aparece um CORPO: coxas, bunda, peitos, lábios, tudo no lugar e no momento certos. Tive que parar por uns dois minutos que foram os melhores da minha vida para admirar aquilo. O prato predileto do Velho Safado. É a minha deixa.
-Obrigado, Hank.
Vou em direção ao meu destino. No meio da fumaça escuto um saxofone, e uma voz angustiada, mas ao mesmo tempo tão firme e doce, um som realmente perturbador e apaixonante. É David Bowie nos seus melhores dias:
Here it comes, here comes the night...
É belo, é triste, pareço ouvi-la junto às batidas do coração
I can see trhough out my window
Walking down the street my girl
With another guy
Her arms around him just like she does with me
It makes me want to die
Here it comes, here comes the night
Sentamos em uma mesa. Agora resolvi colocar as coisas nos seus devidos lugares, planejar o futuro, dizer tudo o que penso, que sinto. Expliquei-lhe o quão importante é a paixão. Quimicamente, fisicamente, biologicamente falando, há importantes alterações no organismo. A paixão é uma herança de nossos ancestrais macacos, que preocupavam-se apenas em reproduzir-se, ou seja, essa coisa de ficar distraído pensando apenas em uma pessoa é um resquício da loucura que é encontrar o parceiro ideal para a reprodução. O organismo inteiro vibra e trabalha em direção a um único ser no intuito de perpetuar a raça. Toda uma espécie depende da relação entre seres do sexo oposto. É por isso que muitas pessoas cometem suicídio por estarem apaixonadas e não serem correspondidas. Não apaixonar-se é um crime hediondo contra a vida. O que eu quero dizer a ela é que a cada paixão não correspondida ocorre um momento de desarmonia no universo, uma pequena, mas significativa em um contexto maior, vitória de Tanatos sobre Eros. Nossa existência corre perigo nesses momentos. Ela apenas olha. Eu quero beijá-la, acariciá-la, protegê-la. Ela pede tempo. “O tempo não importa, apenas a vida importa”, respondo, sentindo-me invencível. Às vezes tenho vontade de cagar na minha própria cabeça, mas, às vezes, não. Foda-se a vida e a raça humana, o sol vai explodir dentro de alguns milênios, mesmo. Ela olha por trás de mim. Lembrei de um sonho que tive, no qual todos os frangos da terra assumiram uma forma humanóide e resolveram vingar-se das pessoas que os assaram e comeram durante séculos.
-Olhe, o Ken chegou.- Ken, é, na hierarquia dos otários, um posto acima de mim. “O marido”.Como em todo sistema hierárquico, certamente alguém se fode. Ah, esqueci de dizer que estávamos lá para comemorar o aniversário de uma amigo meu, e o Ken não havia sido convidado. Pelo aniversariante, é claro.
Apertei a mão do rapaz com a diplomacia cabível e a cara de quem cagou na própria cabeça. Fiquei mudo. Dois segundos que valem pelo diário de Matusalém: farei ou não farei uma cena de filme americano barato? Saio correndo e chorando? Meto a mão no infeliz e mostro qual macaco é mais forte? Puxo minha U.Z.I. e mato todos no ambiente? Já sei! Sou um homem civilizado e, afinal, podemos ser todos amigos (essa hipótese me faz pensar em recém-nascidos sendo estuprados por tiranossauros). Aproveitei que estava bebendo cerveja e realmente precisava mijar.
-Vou ao banheiro.
Paguei a conta e saí.
Here comes the night
Estava uma noite quente, e eu me sentia muito bem. Saí caminhando no meio da rua. Penso no velho Hank. Alguma coisa mudou. Não consigo sentir raiva, nem mais nada, apenas uma estranha sintonia com a rua escura pela qual caminho. Se vou morrer agora ou se sou imortal, nada mais importa. A vida agora passa a ser um filme chato no qual pode-se dormir no meio e acordar sem ter perdido grande coisa. É noite de lua nova e entre os bêbados, os traficantes e os garis madrugadores emerge do asfalto sujo de sangue e cacos de vidro o Homem Gélido, cuja primeira respiração capta o ar poluído e viciado de um mundo insano.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Histórias Sobre a Natureza

Há algo de inquietante entre a luz da lua e a cor dos olhos que a fitam
Algo que tem o cheiro das coisas secretas
É frio, cortante e sereno
Algo que murmura uma canção escrita muitas eras atrás, e que não foi acabada
Uma canção sonolenta, hipnótica, sedutora, que não é percebida pela simples audição
Há algo de estranho entre a luz da lua e a cor dos olhos que a fitam
Algo belo, cinzento e suave
Tem o gosto das lágrimas choradas há muito tempo, que se misturaram à chuva
Há algo excitante entre a luz da lua e a cor dos olhos que a fitam;
O presságio da morte sob o céu estrelado

Penso em um ser vivo parado, imóvel, no meio de um imenso campo, um mar de grama com mínimas ondulações, a 1000 quilômetros da árvore mais próxima. Este ser vivo está imóvel, tentando inclusive não pensar. Este ser vivo está isolado do mundo? Não haverá uma brisa para mover seus cabelos? O sol não vai enviar raios de luz e calor em infinitas freqüências e intensidades com as nuvens a servir-lhe de cortina? E se, por acaso, este ser não estiver em cima de um formigueiro, e o farfalhar laborioso dos insetos coletivos entrar em ressonância com seus ouvidos e transmitir uma mínima mas IRRITANTE vibração em seus ossículos e sua membrana timpânica? E a gravidade da lua, não estará atraindo o ser vivo juntamente com a Terra (e as formigas)? E o ar que o ser vivo respira, não terá sido respirado algum dia por um coveiro aposentado que perdeu a vida trabalhando para os mortos serem enterrados sem poder enxergar as próprias lápides? E, sejamos francos e honestos, é claro que a qualquer momento o celular pode tocar e microondas irão seus neurotransmissores afetar e em um inesperado relance uma idéia pode brotar.
Apesar de não ter celular, a idéia que passou por Harold rápida mas incomodamente naquele momento em que observou a imagem de Jesus Cristo plantou-lhe a semente que, em algum lugar do seu cérebro, desencadeou uma plantação de outras idéias que plantaram mais sementes, que chegaram a sua consciência na forma de uma pequena sensação de incômodo, digna de desprezo, que poderia ser atribuída ao calor das tardes de fim de janeiro.
Harold, naqueles derradeiros dias de verão, estava querendo isolar-se um pouco do mundo, descansar das tórridas exigências e tolerâncias que a vida em sociedade comete. As relações humanas parecem tão pouco evoluídas e tão confusas, em parte pela perda total de sentido das coisas causada por um sistema de cunho massificante, que procura reduzir cada vez mais as diferenças, as possibilidades, criar padrões universais de costumes, retirar as tradições e culturas passadas e substituí-las por um único padrão de ser e existir, ou seja, assim como o dinheiro é um fator universal para compras, ao sujeito cabe tornar-se consumidor universal. O ponto máximo, o segundo advento capitalista: o homem e a mercadoria tornarem-se imanentes.
Por outro lado, a solidão não é um estado absolutamente fixo, aliás, como todos os estados. Ninguém é sozinho, e sim está sozinho. Assim como quando se está casado a solidão pode atrair em certas circunstâncias, quando se está solitário ela pode repelir. Tudo no mundo oscila, o amanhecer torna-se manhã que torna-se tarde que torna-se crepúsculo que torna-se noite que torna-se madrugada e assim por diante, do contrário os casados seriam sempre 100% casados e os solteiros seriam sempre 100% solteiros, e a vida acabaria.
E ali estava Harold, em seu devir solitário e errante, caminhando pela beira do rio entre grupelhos de jovens sonolentos à espera da queda do sol, mulheres horrendas e embriagadas estiradas ao astro cancerígeno e traficantes escorregadios esperando gestos e olhares. Por entre a vegetação lacustre (sejamos insuportáveis: é lago e não rio) duas garotas interessantes, acendendo, puxando e passando, e olhando. O que chamou a atenção foi o fato de uma delas ter a estampa de Jesus na camiseta. Olhares são devolvidos e trocados, mas a solidão acelera os passos e Harold recolhe-se.
Vermelho. A grama que reflete a pálida luz do luar está vermelha, as águas marrons do Guaíba parecem vermelhas como a praga de Moisés sobre o Nilo. O cheiro magnífico e inebriante de sangue retesa seus músculos, seus olhos, seu nariz, faz com que a noite fique iluminada e aberta, para que possa enxergar tudo o que é vivo e se esconde.sob aquilo que cobre a noite.
Dois reais é tudo o que alguém precisa quando está prestes a enxergar um belo pôr-do-sol em um domingo à tarde sem futebol. Estava tudo pronto para a paz quase sem limites quando duas figuras mitológicas nefastas, de bonés brancos, algemas e objetos bélicos ejetores de projéteis à base de chumbo e clavas pós modernas amarrados a suas cinturas, olhares ray-ban vagabundos galhardamente montados em bucéfalos de mesmo nível cultural, apareceram do nada.
-Entãoquédizêquiagorapódifumá, hein?
Tom sarcástico grau 1000 na escala FHC.
-Entãoquédizêquiagorapódifumáhein?
-Repetição eqüina sarcástica- Harold balbuciou estas palavras sem lembrar que o silêncio é o segredo da vida longa. Ninguém ouviu. Talvez só pensou que disse.
-Purquêtunãojogôissoforainda, hein?
Os filhos da puta têm técnica. Não são policiais de filme que dizem “alto, somos a polícia, você está preso”. Fazem perguntas, e sabem, assim como os educadores antigos, que seres humanos apavorados têm dois tipos de reação diante de inquisições sumárias: ficam em silêncio ou dizem toda a verdade, não importa se saibam dela ou não. Aliás, o silêncio é a mais imediata das respostas. E Harold estava em silêncio.
-Quifoi? Ficômudo, hein?
...
-Hein? Ficômudo?
Respostas. A vida condensou todas suas perguntas naquela esfinge que tem cabeça de animal também e não atura dualidades, ou seja, “devoro-te ou devoro-te”
-Temmaisalgumacoisaí, hein?
-Achuquiogatocomeualínguadele, hein?
O interrogado abriu sua pochete. Não queriam ver seus documentos nem saber quem eram seus pais. Queriam o fumo. Não. Queriam roubar alguém e este alguém não pode denunciar nem reclamar. Eram crianças brincando de polícia e bandido, sendo eles polícia de verdade e Harold, o brinquedo
Agora sente calor, como se a cor vermelha do sangue o acariciasse como os raios de sol da aurora.
Estava sendo roubado e podia ser punido por explicar as circunstâncias de um delito cometido contra ele próprio, objeto de um prazer microcósmico e momentâneo de dois pés-rapados cujo salário diminuto e a dura vida eram recompensados com pequenos minutos de divindade relativa.
No momento em que as leis não são ao menos mentiras, Harold pensou em poesias, em o quanto a morte parece quase palpável. Sua indignacão tornava-se ódio de tudo que andava e rastejava, sentiu pena e considerou seus agressores tão desprezíveis que os perdoou. É a natureza. O show acabou. Viram que não havia nada que prestasse e deram meia volta para seguir suas rotinas e voltar para casa. Harold agora estava livre para ver o pôr-do-sol. Foi só um susto. Vermelho. Tudo agora parece vermelho.

II

Patas de cavalo, armas, cassetete e cabelos humanos estavam esparramados sobre a mesma poça de sangue em que Samael estava mergulhado. Tudo o que sabia era seu nome e que havia gosto de sangue em sua boca, e era bem capaz de concluir que havia estraçalhado dois cavalos e dois seres humanos que, provavelmente, eram policiais. Sentia um intenso prazer em cada molécula de hemoglobina que vertia em sua garganta, mas não o suficiente.
O jovem predador mergulha nas águas negras e passa a sentir em seu cérebro o conhecimento de muitas eras. A sabedoria do universo aguçava sua fome, o empurrava para a caçada, e tudo mais parecia fazer sentido. Não precisava mais saber quem era. O caos forneceu-lhe um presente inestimável: ser um acaso tão imortal como uma supernova que surge nos confins do espaço ou uma perfeita gota do orvalho matutino deixando passar por si a luz branca do sol. O batismo.
Samael dá seus primeiros passos na relva macia até o concreto de uma ciclovia repleta de artérias pulsando em pescoços suados. Percebe que está vestindo um calção de banho e uma camiseta ensopados de sangue e água poluída. Volta para a beira do rio e sente o cheiro de quatro humanos, dois de cada sexo, e o odor de ilex paraguaiensis. Os quatro jovens aproximam-se e perguntam as horas. As duas fêmeas são bem atraentes. Aproxima-se. Nota a imagem de Jesus Cristo na camiseta perfumada da bela morena, e uma tatuagem subindo pelo pescoço. Uma sensação estranha percorre seus caninos.
-Horas? Não, eu não uso relógio.
-Então tá, valeu.- barba comprida, cabelo comprido, aquele coração luminoso no lugar incorreto, lá estava J.C. movendo-se sobre um par de seios.
-Posso fazer uma pergunta? É mera curiosidade. Porque tu usas uma camiseta com Jesus Cristo estampado?
-Ah, sei lá, é uma camiseta velha, e, afinal, Cristo era um cara muuuuuito legal. Eu não dou bola para o que a igreja fez com ele, deturpou a imagem de alguém que era simples e pacífico. Eu acredito em um Deus dentro de cada um de nós, e não precisamos ir numa igreja encontrar ele. Sei lá, é uma força. Afinal, por que será que o universo é tão perfeito?
-Tem razão, por que será? Não é todo dia que vinte litros de sangue jovem caem do céu, não é mesmo?
-O quê?
-É a natureza...
Parece repetitivo, mas não há campanha publicitária capaz de descrever o que um vampiro sente quando bebe sangue. E é tudo grátis.

III
Dez minutos depois.
Frederico Hinterholtz , 32 anos, empresário, estaciona seu Porsche no gigantesco estacionamento branco de um shopping center, acompanhado de sua jovem esposa, Bárbara. Ao sair do carro ambos notam a aproximação de um jovem de longos cabelos negros e olhos cinzentos, vestindo calção e camiseta sujos de sangue.
-Boa noite- Samael os saúda docemente- eu preciso de uma pequena ajuda. Como vêem, estou mal vestido e com muita fome.
-Não tenho dinheiro-esbraveja Frederico, dando sinal de impaciência- e eu e minha esposa estamos com pressa.
Uma morena de tirar o fôlego, voluptuosa, seios proporcionalmente grandes e firmes, maquiagem sóbria, usando um vestido de seda que acariciava seu corpo bronzeado e com um cheiro enlouquecedor. Frederico é alto e loiro, estilo Klaus Kinski, e está vestindo um Armani cinza escuro.
-Tudo bem, dinheiro não é problema.
O pescoço de Frederico quebrou em um gesto simples e sutil. Bárbara tentou gritar, mas seus lábios foram paralisados por um beijo longo e sensual, que transformou seu horror em um incontrolável desejo por aquela perturbadora figura que acabara de assassinar seu marido. Feromônios: não há fêmea que resista a eles, como os insetos que são atraídos pelo fortíssimo e inebriante odor das flores noturnas.
Bárbara agora está dentro do Porsche, em cima de um ser de músculos rijos e movimentos ágeis que está deitado sobre suas roupas. Teve seu último e mais perfeito orgasmo enquanto sua língua era arrancada e por sua boca vertia todo o sangue de seu corpo até o último suspiro.
Samael vestiu as roupas de Frederico, deixou os corpos dentro do carro e aproveitou as entradas no bolso do terno para ir ao cinema como qualquer mortal.
- “Mal vestido e com muita fome”. Essa foi boa.
Naquela noite, rara para um cinema de shopping center e um casalzinho “emergente” (enfim, isto é uma obra de ficção), estava em cartaz “Solaris”, de Andrei Tarkowski. Um filme existencialista russo de quase três horas e muito arrastado. Mas quem se preocupa com o tempo, afinal?

segunda-feira, 12 de março de 2007

Feche bem os olhos para dormir

Feche bem os olhos para dormir

Eu

Cavaleiro das armas escuras
Onde vais pelas trevas impuras
Com a espada sangüenta nas mãos
Por que brilhas seus olhos ardentes
‘E gemidos nos lábios frementes
Vertem fogo do teu coração? Cavaleiro, quem és? o remorso?
Do corcel te debruças no dorso...
E galopas do vale através
Oh! Da estrada acordando as poeiras
Não escutas gritar as caveiras
E morder-te o fantasma nos pés?

Onde vais pelas trevas impuras,
Cavaleiro das armas escuras,
Macilento qual morto na tumba?
Tu escutas... Na longa montanha
Um tropel teu galope acompanha?
E um clamor de vingança retumba?

Cavaleiro, quem és?- que mistério.
Quem te força da morte do império
Pela noite assombrava a vagar


O fantasma

Sou o sonho da tua esperança
Tua febre que nunca descansa
O delírio que há de te matar...

Álvares de Azevedo

I

Uma vida normal, é o que todos querem. Pegar ônibus, trabalhar, ligar a TV, ir ao shopping center consumir na falta do que fazer, preencher o espaço vazio do avançar do tempo que é dinheiro com atividades que são mais vazias ainda. Por sinal, a expressão “tempo é dinheiro” torna-se cada dia mais verdadeira, e, em tempos de velocidades como estamos, o tempo das atividades práticas está diminuindo com as máquinas tornando-se cada vez mais completas, como escravos contemporâneos. A questão é que o tempo economizado é algo precioso, é o chamado tempo livre, aquele mesmo para ir ao cinema, ou ao teatro, ou velejar, visitar os amigos e colocar as leituras em dia. Quantas pessoas não poderiam descobrir seus talentos literários ou plásticos aproveitando suas curtas jornadas de trabalho descobrindo todas as possibilidades que a arte proporciona de transformação de uma realidade através de sua representação pela via do sujeito, o saudável conflito hermenêutico das subjetividades. Não. O sistema quer consumidores, e não cidadãos. A loucura capitalista está cada vez mais intensa e megalomaníaca, e hoje o destino do universo parece estar nas bolsas de valores e nas altas e baixas do dólar. O dinheiro, sendo ele a mais simbólica das invenções, está funcionando como um buraco negro de sentidos, o grande atrator. Eu gostaria de, um dia, nascer e passar o tempo todo de minha vida em um país diferente do Brasil, para saber se, como eu, alguém de outra pátria vive em uma cultura econômica e comercial tão intensa e tão melancólica. Estamos pagando juros há quinhentos anos e todo mundo sabe o que é estar por algum tempo endividado e pagando compromissos, e alguns morrem por suas dívidas, mas, nosso país, nossa economia coletiva, está em uma grossa enrascada desde quando os portugueses trocavam espelhinhos, rum, fumo e doenças por riquezas minerais inestimáveis e o prazer mesquinhamente sádico e bárbaro de subjugar e dominar outros povos. Para bom entendedor, meio milênio basta para nossos credores, sejam eles quem forem, descobrirem que, desde a primeira promissória que um brasileiro assinou cinco séculos atrás, sempre olhamos para o lado (como o Romário faz) e dizemos “nós sempre pagamos nossas dívidas, qualé, tão duvidando de mim?!” e os débitos vão acumulando. Estou convencido de que a dívida é a razão de ser do brasileiro, nosso produto nacional.
E era na sua enorme dívida com o banco que Ian estava pensando enquanto caminhava pelas ruas escuras do centro de Porto Alegre, enquanto uma tórrida chuva molhava seus pés, suas calças, seus documentos, sua vida e seu desespero. Suas meias estavam enxarcadas e seu corpo doía de frio e cansaço, uma constante exaustão. Era preciso parar tudo, estancar o fluxo da realidade, deter os giros de um mundo que o sacudia, triturava e misturava como um liqüidificador cósmico.
Ian pisava nervosamente nas poças d’água enquanto lembrava de um sonho muito reprisado em suas noites: Porto Alegre sob um ataque nuclear, bombas atômicas e mísseis provocando explosões luminosas e espetaculares. Este pesadelo, possivelmente, assombrou várias gerações que viram um ex- cowboy decadente Ronald Reagan propagandear sua Guerra nas Estrelas e assistiu “The Day After”, um filme catástrofe cujo americaníssimo roteiro reproduzia a temível Guerra Atômica e os pacatos e milimetricamente heróicos cidadãos americanos em suas vidas W.A.S.P. antes e depois das explosões. Enquanto as ogivas explodiam em seu sonho, e sua pele estava para ser incinerada ou seus orgãos internos desmanchavam-se com a radiação, ou sua mente ocupava-se em descobrir por que diabos alguém bombardearia Porto Alegre, Ian pensava que a guerra acabaria na marra com o sistema, pelo menos abriria um espaço para a reconstrução de algumas coisas, o surgimento de outros tipos de sociedades e formas de viver em um mundo pós-holocausto Um susto! A raça humana precisava de um susto, do tipo daquele que alguém leva quando é atropelado em uma rua vazia e a única coisa que se vê após o baque são os paralelepípedos e algum imbecil hipócrita perguntando quem se machucou. A miséria humana clama por um aviso dela mesma: pare e pense. Ian já ouvira histórias sobre a possibilidade de somente as baratas sobreviverem ao holocausto. Considerando que não passamos de uma praga de seres compostos de água e carbono que mancha a crosta terrestre, devemos ficar felizes, pois, como conceito e princípio, a humanidade sobreviverá!
-Nhacnhacnhacnhac
II

Um barulho estranho ecoava pelos cantos e superava levemente o dos intermináveis pingos de chuva. A rua estava completamente vazia, com exceção de uma criança que atravessou o caminho de Ian e ficou parada no meio da calçada. Algo estava errado. Era um bebê loiro, de imensos olhos azuis, vestindo apenas uma fraldinha branca com um alfinete do Mickey, não pediu dinheiro e estava completamente seco. Seu olhar era repleto de inocência e candura, as pequenas gengivas sorriam e as mãozinhas abanavam alegremente, como se um pedaço do céu tivesse desabado e trouxesse junto um anjinho brincalhão e desajeitado. Sua voz era estridente como a de qualquer bebê, mas a fluência das palavras ultrapassava a de qualquer adulto.
-Precisamos conversar, Ian.


III

A chuva havia parado e Ian estava deitado no meio fio com o crânio latejando de dor. Teria escorregado e batido a cabeça? Começou a sentir pancadas no rosto, abriu os olhos e vislumbrou a figura tétrica de um policial tentando reanimá-lo.
-O que foi, andou bebendo demais hein?
-Eu..., hã...acho que escorreguei e bati a cabeça.... tive um sonho estranho.
-Sei. Tem um pouco de sangue no seu cabelo, acho melhor ir até o H.P.S. para dar uma olhada.
-Hei, porco!
Aquela voz! Lá estava o anjinho caído, que, ao que tudo indica e sob certa argumentação filosófica, era de verdade.
-Hei, porco, deixe ele em paz.
O policial se virou e demorou a perceber de onde vinha o som daquela vozinha irritante. Abaixou-se, ficou observando por alguns instantes, um pouco surpreso, e pôs as mãos nas imensas e rosadas bochechas da pequena e adorável criaturinha como se ela fosse um brinquedo de borracha.
-Que porra é essa...
-Nhac-Levou uma mordida daquelas no dedão.
-Ai! Seu merdinha, eu vou te ensinar...
-Nhacnhacnhacnhac- o anjinho passou a mastigar a mão do homem de uniforme, que gritava desesperadamente.
-Nhacnhacnhac- da mão para o braço, nhacnhacnhac do braço para o tórax nhacnhacnhac, o sistema digestivo, excretor, nhacnhacnhac secretor; a criaturinha trabalhava rapidamente e com extrema eficácia considerando que era completamente banguela.
Ian olhava paralisado para o sangue que escorria entre pedaços de ossos, dentes e nacos de carne mole e vermelha entre manchas amareladas de gordura. É disso, e nada mais, que um ser humano é composto. É claro que um leitor com mais (ou menos) espírito crítico imaginaria o absurdo que é uma criancinha de oito quilos ser capaz de devorar um adulto dez vezes maior, e permanecer com o volume inalterado, mas o papel de um escritor é relatar os fatos, independente deles serem verdadeiros e coerentes ou não. O negócio é que o sujeito foi completa e absolutamente deglutido em menos de cinco minutos, e não sobrou nada, nenhuma idéia, nenhuma piada, nenhum ato, nenhuma dor, por mais desprezível que fosse.
-Burrrrp. Arrrrout, como eu já disse, precisamos conversar.
-Qual é o assunto? E o que diabos é você e o quer comigo?
-Eu posso lhe dizer o segredo do universo... buurrrp... e de graça. Quem eu sou não interessa. Basta saber que eu sei o segredo de tudo o que existe. E você ganha de brinde o sentido da vida.
-Ah, é? E por que eu iria querer saber o segredo do universo?
-Ora, todos querem saber. É para isso que serve a arte, a ciência, a filosofia e a religião.
-Se eu quisesse, e porventura soubesse o segredo do universo, quem iria acreditar em mim? As pessoas iriam perguntar quem me disse, e o que eu responderia? “Foi um merdinha devorador de brigadianos de meio metro de altura que criou inteligência e liderou um motim em algum berçário”? Ótimo! Eu poderia escrever o roteiro de um filme, mas ele seria considerado um plágio descarado e mal feito do “Brinquedo Assassino” que já é descarado e mal feito. Ninguém se importa com o segredo do universo, já está fora de moda, seria mais uma manchete nos jornais e em alguns programas de TV, e, aliás, muitos já descobriram à sua maneira, pois é impossível postular uma verdade universal. Não podemos desconsiderar a hipótese de, em outros lugares do mundo, e até mesmo em outros planetas, seres iguais a você estarem tentando passar o mesmo golpe. É óbvio. Por que não? Uma gangue de estelionatários mirins salafrários com cara de anjinhos barrocos vendendo verdades apócrifas. Puro marketing barato. Olha, seja lá quem ou o que for, você ainda precisa estudar muito. Além do mais, já é tarde e é hora de um pequeno sofista estar na cama.
-Espere! Eu posso provar. Eu sou uma entidade mágica mais antiga que o tempo, eu possuo a sabedoria infinita...
-É claro.
Ian agarrou a arma do brigadiano e a descarregou naquele pivete cósmico embusteiro. Não há entidade mágica que resista a um bom “tresoitão”. Ele não fará falta, já existe merda no mundo capaz de manter as latrinas ocupadas por milênios. O segredo do universo estava ali, caído na calçada e evaporando junto com os esgotos e a urina dos ratos. Afinal, que importa se um velho barbudo e arrogante criou tudo em sete dias para poder exercer seu autoritarismo, ou uma grande explosão arremessou planetas e estrelas em tudo que é canto e em alguns o carbono, o oxigênio, o hidrogênio e o nitrogênio misturaram-se de uma forma maluca até chegar em uma criatura que gasta seus domingos inúteis na frente da T.V.? E se alienígenas plantaram sementes aqui e a raça humana é, na verdade, uma grande colônia? E se algum gigante megacósmico parou em nosso sistema solar para dar uma cagada e a merda veio parar aqui e os vermes contidos nela evoluiram? E se tudo for o sonho de algum adolescente espinhento que passou tempo demais na Internet? E se, neste momento, como uma imensa linha de montagem, em algum lugar que pode ser a bilhões de quilômetros de distância ou dentro da pia do banheiro entre os aparelhos de barbear, há um escritor escrevendo esta mesma história neste mesmo computador nesta mesma cidade?
Chega.
Akiles Cronópio

Tijolada com mel

Tijolada com Mel
Akiles Cronópio

Branco. Paredes brancas, o teto é branco, e pessoas de branco correm de um lado para outro. O ar está branco. Levantar a cabeça agora é uma tarefa complicada, mas sempre é preciso olhar o relógio. Quatro horas da madrugada na emergência do Pronto-Socorro, e está frio, um frio orgânico e irresistível. A essa hora o corpo simplesmente resolve esfriar, e não importa se lá fora está 35 ou quarenta graus. Estou imóvel. Estarei morto? Tento lembrar como cheguei aqui, e o porquê de estar na sala de espera, e não agonizando em alguma cama cheia de tubos de borracha, para terminar tudo onde tudo começou. Pessoas nascem em um hospital, morrem em um hospital, passam suas vidas em um hospital e, às vezes, seus cadáveres ficam ali sendo abertos e fechados, e a triste eternidade da morbidez é passada em um hospital. Hoje é sábado e, pelo calendário ocidental, ontem foi sexta-feira.
Uma festa de aniversário! É, pode ser. Um aniversário no salão de festas de um condomínio fechado. Cheguei um pouco tímido, conhecia poucas pessoas, e resolvi ficar em um canto, apenas observando. Comecei e fumar um cigarro atrás do outro. Uma criatura feminina de olhos azuis e largo decote foi-me apresentada e fiz um certo esforço para bater um papo. Os olhos eram muito azuis, parecia que iam saltar para fora das órbitas, e estavam assimétricos em relação as demais partes do globo ocular. Apenas uma frase sobre isso: se Capitu usasse lentes de contato, Bentinho jamais sentiria o misto de paixão e temor pelos seus belos e perturbadores olhos de ressaca, e certamente Dom Casmurro teria virado novela mexicana.
Valia a pena ficar olhando para o decote, além de ser muito interessante pensar que o homo sapiens sapiens apresenta em seu cérebro um conjunto extremamente complexo de células nervosas chamado córtex. O córtex é responsável pelas funções superiores do sistema nervoso, como o raciocínio, a memória e a elaboração do discurso. Graças e esta valiosa estrutura surgiram grandes pensadores como Platão, Descartes, Kant, Nietzsche e Camille Paglia e, para quem, por algum motivo, não tornou-se um grande pensador, o córtex fornece a habilidade de ler, interpretar e ensinar suas grandes obras e sistemas simbólicos. Bom, como eu ia dizendo, é curioso observar como uma criatura, representante da espécie homo sapiens sapiens, saudável (e que saúde), portadora de uma estrutura cortical perfeitamente funcional e freqüentadora de um curso superior de Psicologia (onde se deveria ensinar os Grandes Pensadores) não é capaz de articular mais do que duas frases seguidas, e quando o faz, as palavras não vão a lugar nenhum, ficam diluídas no mar de sons que banha a atmosfera terrestre. Eu tenho uma hipótese ecológica muito íntima de que a poluição sonora em nosso planeta é conseqüência do número de imbecilidades fúteis e politicamente corretas que as pessoas dizem apenas pelo ato de dizer, e não dos pobres operadores de britadeira ou dos inocentes automóveis.
Agora chega de bancar o crítico. Encerrei minhas pesquisas e fui dançar um pouco. A pista estava totalmente recoberta de fumaça de gelo seco e corpos balançavam desordenadamente no ritmo seqüenciado e violento da disco dos anos noventa. Ali estava eu, que quando criança fiquei emocionado ao ver Tony Manero executar manobras ousadas e ágeis, unindo sua agressividade latina ao souldiscofunk britânico dos Bee Gees. Agora, aos vinte e três anos, fico sacolejando o corpo na falta do que fazer ou dizer. “Ah, que sujeito chato sou eu que não acha nada engraçado...” Sim. Somos uma juventude conservadora em um mundo conservador. Olho à minha volta: o lugar cheio de estudantes universitários vestindo as mesmas roupas, comentando sempre os mesmos assuntos e partilhando os mesmos e inexistentes ideais. Mortos. Estão todos sobrevivendo em suas vidas vazias repletas de batons, carros importados, McDonalds e anfetaminas, esperando o momento certo para casar e repetir a mesma história de seus pais e seus avós. Houve um tempo em que os pais e os filhos entravam naquilo que os psicólogos de plantão na mídia chamavam de conflito de gerações, e que a melhor forma de acabar com este conflito seria o diálogo. Hoje não há mais conflito, não há diálogo, não há nada. São todos autômatos na frente da televisão, repetindo falastrices como “recursos da iniciativa privada” e “estudar com vistas ao mercado de trabalho”, e que cada um tem o direito de pensar e fazer o que quiser. Eis o que os gordos empresários, médicos e advogados, progenitores dessas pobres crianças projetam para os seus filhos: uma ecologia liberal, onde os pacientes pagam para os psicólogos e psiquiatras anestesiarem a angústia de vidas improdutivas e monocórdicas. Crianças. Lembro de o quanto a televisão era alucinante para mim, de quanto eu brincava imitando os personagens dos desenhos animados e dos filmes japoneses. Agora os adultos e os quase adultos imitam com perfeição tudo o que a TV mostra, não em brincadeiras, mas em suas vidas cotidianas. Esse papo de juventude rebelde acabou, se é que existiu algum dia...ei, o que é aquilo?
No auge da fumaça, dos decibéis e da cerveja quente aparece um par de seios, um par de olhos, um nariz, milhares de fios de cabelo negros, longos e brilhantes, trilhões de células epidérmicas lotadas de melanina ativada pelo sol recobrindo os músculos, o sistema circulatório, nervoso, glandular, reprodutor e tudo o mais que possa constituir o que os ocidentais chamam de CORPO. E o que é melhor: o tecido industrial que cobre esta maravilha genética o faz com total incompetência, e meus olhos ardidos de gelo seco podem vislumbrar um objeto quase celestial. E mais: ela dança olhando para mim, ou melhor, não dança, faz desenhos pelo ar, lança olhares furtivos e despretensiosos, uma harmonia de aproximações e afastamentos, o primeiro ato da ópera do acasalamento. Preciso de outra cerveja. Entro na cozinha e sinto o inebriante odor da erva sagrada. Ora, até que uns dois pegas não vão mal. Entro na roda, converso por uns dez minutos e volto a minha dança tribal. Ela continua lá, flutuando pela pista, volta e meia olhando fixo nos meus olhos. Preciso mijar. Há um enorme espelho na porta do banheiro e ali fico olhando para minha própria cara inchada e patética.
-Muito bem, Flávio Amorim, agora é tudo contigo.
É tudo comigo, e parece fácil. Será? Acho que fiquei paranóico, ela deve estar olhando para mim tanto quanto para qualquer coisa ou pessoa nas proximidades, afinal, é uma festa cheia de pessoas.
-Vamos, Flávio, isso é um jogo de cartas marcadas, e a tua está fora do baralho. Toma mais umas cervejas, vai comer um X e esperar a noite acabar em algum boteco.
E se ela se interessou realmente? Peço um cigarro, pergunto as horas, fico falando uma ou duas bobagens, vamos para algum lugar, damos uma trepada e aí acabou, vou para minha casa, assalto a geladeira e vou dormir na companhia dos mosquitos, na serena e animal felicidade do dever cumprido, sem nenhuma preocupação com o fim da ética, da política e do amor nas relações humanas. Quem sou eu para falar do mundo, afinal? Eu estou aqui, não estou?
Lá estava ela, chegando cada vez mais perto, o demônio medieval do sexo. Foda-se a sociedade, fodam-se os loucos e os grandes pensadores. Ela parece enfeitiçada, a vítima perfeita, lânguida, sensual, os olhos agora fechados, dançando cada vez mais lentamente, e acabando por despencar no chão duro e frio como uma velha ponte sendo implodida ou o pobre jagunço Adilson Maguila Rodrigues atingido pela lendária “tijolada com mel”, apelido carinhoso dado ao famoso cruzado de esquerda do gigante “Big” George Foreman, 45 anos e quase 200 quilos. Duas ou três amigas a erguem e levam para a rua. Uma figura patética, mal consegue manter os olhos abertos e balbuciar coisas ininteligíveis. Alguém tenta enfiar refrigerante goela abaixo, e, como ele vem, volta. Eu fiquei ali observando suas coleguinhas falarem com ela, tentando reanimá-la, colocá-la em pé, só para cair de novo e ficar pior. Passo a escutar murmúrios:
-Ah, meu Deus, ontem ela brigou com o noivo.
-Ela tá mal, eu acho melhor levar no HPS.
Noivo? Ela não devia ter mais que dezessete anos e estava noiva. Dizem que é a nova moda: voltar aos tempos do compromisso, das alianças, das boas relações entre as famílias e à fidelidade eterna, e, acredite, caro leitor, fala-se até em casar virgem. Agora os bons ideais familiares e puritanos remixados estavam ali, atirados no sofá, vomitando e dando vexame.
Agora nossa bela noivinha estava completamente inconsciente. Bom, já que todos os machões saíram correndo, alguém precisa fazer alguma coisa. “Oh, não, Alfred, o bat-sinal! A mulher gato está sofrendo uma overdose!” Ajudo as amigas a carregá-la e colocá-la em um táxi e fomos os quatro ao HPS.
-Tu és o namorado dela?
Branco. Está tudo branco de novo. Uma imensa mulher de branco está agora me fazendo perguntas. Onde está o comunicador? “Sr. Scott, transporte para um, agora!” Tudo o que quero agora é retornar à Enterprise, participar de alguma batalha contra os Klingons ou tentar convencer Spock de que é metade humano e que também possui emoções.
-Sr. Sulu, levantar os escudos e prosseguir em dobra espacial 4.
-O quê?
-Não, eu não sou o namorado dela, na verdade eu nem sei seu nome. Nós estávamos em uma festa e ela simplesmente desabou.
-Como é o teu nome?
“ James Tiberius Kirk, comandante da Enterprise”.
-Flávio.
- Pois é, Flávio, ela vai ficar bem. Apenas bebeu além da conta e tomou muitos remédios para depressão.
-Sei. Uma injeção de glicose, uma limpeza estomacal e já pode ser vendida como nova.
-Exatamente.
-Então eu acho que posso ir. Até mais.
-Até mais.
-Ah, por favor, não diga nada a ela sobre mim. Bom, enfim, não há nada para dizer, mesmo...
-Pode deixar.
Caio fora daquele lugar cheio de sobreviventes de guerras urbanas. Agora sou apenas mais um em busca de uma cerveja, e lá estava ela no S.O.S Bonfim, bem em frente ao hospital. Uma Norteña gelada, um cigarro e a noite agora seguia rumo a um final feliz.
E aí, vale a pena?

Sexo, drogas e animais domésticos

Sexo, Drogas e Animais Domésticos
AkilesCronópio
Mont’ Serrat é um bairro portalegrense relativamente tranqüilo e pacato, não havendo muitos motivos para preocupações radicais com a segurança. Pode-se chamar de preocupações radicais cercas elétricas, cacos de vidro nos muros, circuitos internos de TV, alarmes, cães do tamanho de cavalos e seguranças do tamanho de seguranças, enfim, tudo o que custe uma fortuna e sirva para proteger televisões e videocassetes. Dentro da monotonia cotidiana de qualquer bairro residencial, pode ocorrer um ou outro roubo de carro, ou algum assalto ou uma briga, mas nada muito freqüente. Quem tem Marco Maciel como vice-presidente certamente deve ter outras coisas para preocupar-se, afinal, para que o medo de ser roubado funcione é preciso ter alguma coisa para roubar, assim como para que uma televisão funcione é preciso pagar a conta da luz.
Por favor, que ninguém me pergunte em que zona fica meu bairro, pois, além de eu não ter a mínima idéia, esta história de zona não me agrada nem um pouco. Certa vez, na época do colégio, o pai de um colega perguntou se minha mãe era de Nova Prata, eu respondi que não, mas que nossa família vinha de uma zona próxima.
Pois é, uma vez o meu pai me levou na zona e nós encontramos ela...
Desde então, eu evito usar o termo “zona” (principalmente diante de velhos bebuns).
Era uma daquelas noites quentes, típicas das quartas-feiras dos últimos dias de novembro. Não por acaso, era quarta-feira, e novembro estava terminando. Na verdade isso não é nenhuma coincidência, pois eu não recordo direito quando era, talvez isto nunca tenha acontecido, e muito menos no fim de novembro e numa noite quente, mas, se acontecesse alguma coisa, eu gostaria que fosse nesse dia. Pois é, era 29 de novembro, uma noite tão quente que os dragões tinham que voar mais alto para pegar um ar fresco. Dragões? Sim, dragões. Algum problema com relação a dragões?
Lá estava eu, chegando em casa às onze da noite, cansado, entediado, chateado, molestado, sonolento, faminto, endividado e decididamente de saco cheio. O ônibus havia demorado mais do que o necessário para me irritar, e, na verdade, eu não queria ir para casa, nem para lugar algum.
Nunca suportei o calor das noites de fim de dezembro. Eu disse dezembro? Ora, há alguma diferença climática relevante entre as noites de fim de novembro e dezembro? E faz alguma diferença ser novembro ou dezembro? Eu nem disse que ano é, e nem vou dizer, afinal, não importa. Para suportar um pouco a temperatura, comprei meia-dúzia de cervejas no mercado próximo e sentei no pátio de casa, fazendo um esforço danado para não pensar. Atrás da minha suntuosa residência há um enorme prédio, tão enorme que parece uma parede entre meu pátio e o infinito. Minha antena de televisão não capta canal nenhum por causa daquele monte de concreto e condôminos. Com o advento da TV a cabo e graças a esta maravilha da arte arquitetônica de amontoar pessoas posso agora assistir programas musicais mexicanos, porto-riquenhos e trinidad-tobaguenses, e pagar por isso. Eu não entendo lhufas de espanhol, então mudo para canais que passam filmes americanos dublados em português e com legendas na pobre e castigada língua de Cervantes e dos turistas argentinos. Globalizemos, pois, globalizemos.
As cervejas estavam geladas e desciam rapidamente enquanto olhava para as janelas do edifício. Nada além de um imenso paredão cheio de donas de casa, maridos e crianças. Além, é claro, das luzes de Natal. Eles nos mandam tomar banho frio e morrer de calor sem ar-condicionado para economizar eletricidade e no Natal lançam concursos para ver qual casa fica mais iluminada. Certamente estamos a mercê de futuras uzinas nucleares e vazamentos radioativos que logo deixarão tudo brilhando. Merry Christmas, cidadãos cancerígenos moradores de bunkers. Já imagino os presentes de Natal: luvas com seis dedos, óculos para três olhos, camisolas de chumbo... Será a geração raios-X (parabéns a você, leitor, que sobreviveu a este festival de trocadilhos infames e idiotices de mau-gosto, porém, é apenas o começo).
Em meio aos goles de cerveja e o bater de asas dos dragões, começo a escutar gritos e sons de coisas quebrando vindos do edifício. Vamos dizer que as vozes pertencem a três representantes da raça humana: duas fêmeas caucasianas, uma pré-púbere, outra já passando dos trinta e um macho (típico) entrando na crise dos quarenta.
-Filho da puta!-disse a mulher mais velha.
-Puta és tu-fala o grande macho-vou pôr uma roleta na porta do teu quarto.
-Não me bate, ai não me bate!
Coisas quebram e voam pela janela: um abajur, roupas, toalhas, revistas. Algo peludo é arremessado, não dando para identificar direito (o apartamento é no oitavo andar). Não sei por que, eu juro que não sei por que, resolvi investigar o que estava acontecendo. Saí para a rua e presenciei um espetáculo dantesco: velhas com bobs nos cabelos, velhos de pijama, taxistas, empregados de um supermercado próximo, crianças, mulheres, homens... Todos olhando para cima com a boca aberta ou comentando bobagens. Se você quer mudar o mundo deve pensar em duas coisas: a primeira é desistir, e a segunda é estar preparado para enfrentar algo mais do que exércitos ou a imprensa.
Nesse burburinho todo, um fala para o outro, que chega aos ouvidos de um terceiro, um quarto e um quinto, que por acaso sou eu. A polícia chega, entra no prédio, demora alguns instantes e volta triunfante: o marginal foi preso em flagrante batendo na mulher. Bom, depois descobri que a história não era bem assim. O que aconteceu é que naquele apartamento morava uma mulher que recebia homens em casa, e não para tomar chá ou ver novela. Junto com ela morava a filha de doze anos, que como a maioria de nós, é oriunda de uma entre tantas relações sexuais que o ser humano tem em sua curta, porém entediante, vida. Naquela noite, certamente alguém resolveu reclamar seus direitos do consumidor de uma forma, vamos dizer, enfática.
Não sei o motivo da surra (se é que tinha motivo), mas fiquei atônito quando vi aquela massa de pêlos e sangue estatelada no playground do edifício. Um gato. Aquela coisa peluda que eu vi ser arremessada pela janela era um gato preto e gordo, que agora fazia parte do piso. Não havendo mais nada para fazer ali ou em qualquer outro lugar, voltei para casa e esperei a noite passar para começar outro dia, e assim seguia o ciclo do sol e do tempo entre as janelas empoeiradas e a triste e consoladora idéia de que tudo isso vai acabar.
Epílogo
Não faz muito tempo que eu sou um gato. Na verdade, não sei direito, afinal, gatos não sabem sequer ver as horas. Minha vida era relativamente tranqüila, minhas donas me alimentavam sempre e cuidavam bem das necessidades básicas, que não são muitas, pois gatos não vêem TV, não usam cartão de crédito e não vão três vezes por semana ao analista (nem falar, nós falamos...).
A única coisa estranha eram as pessoas, também humanas (creio eu) que visitavam o apartamento com uma certa freqüência. Anões, japoneses, anões japoneses, halterofilistas, trapezistas, estudantes universitários e até escoteiros conviviam ali em plena harmonia. Eu não entendi ainda por que aquele baixinho de bigode se irritou e resolveu espancar minhas donas. E o que é pior: ele me pegou pela cauda e começou a bater na mulher... comigo. Agora que eu entendi a expressão “só dando com um gato morto na tua cabeça”.
Bem, aqui estou eu voando em direção ao chão. Não tem problema. Gatos não sabem o que é a morte. Só espero que haja bastante leite e uma boa caixa de areia. E nenhum anão.